12:36Heleno de Freitas, o remake

por Ivan Lessa*

Acompanhando nossas folhas, noto que o filme sobre a vida de Heleno de Freitas tem feito um enorme sucesso.

Como se trata de ídolo meu, e sabedor de que nunca irão passar aqui, entro no bolo e, pela primeira vez em minha vida profissional, requento uma croniqueta escrita e publicada aqui mesmo na BBC Brasil em 3 de maio de 2006.

Todo cronista, mesmo os mais mixurucas (cores que defendo na zaga direita), vez por outra, na falta de assunto, requenta uma coluna. Não o faço por preguiça.

Apenas minha maneira de relembrar e mais uma vez dar um “alô, estamos aí” aos tempos que se foram.

Chamo o bisonho feito meu de “remake”, só para dar um toque cinematográfico ao mais cinematográfico de nossos jogadores. Mudei 2 verbos, cortei 1 frase, acrescentei outra, salpiquei mais umas vírgulas, como se distribuindo o jogo pelo miolo do campo. Cada um faz o “remake” que pode. Segurem aí:

“Primeiro semestre de 1948, com certeza. Eu e um amigo. Depois do colégio, 1ª série ginasial do Mello e Souza, eu, do Mallet Soares, ele. Corríamos para a praia, lá por volta de 1 da tarde, para bater bola e pegar jacaré.

Meu amigo se chamava Alain Scemama (pronunciava-se “cemamá”) e, nesse ano mesmo, foi para a França e lá ficou até morrer.

Eu morava na Atlântica, quase esquina de Bolívar, ele mais adiante, na esquina com Xavier da Silveira, num edifício onde, mais tarde, morou o Brizzola.

Foi, claro, num dia de semana. Recapitulando: uma da tarde, quase ninguém na praia. Surgem, vindos da Bolívar, Heleno de Freitas e outro senhor (devia ter uns 25 anos) que estava sempre por lá, pelo posto 4 e meio, pulam do calçadão, correm pela areia.

Eu, garoto botafoguense, vigoroso half-esquerdo do Dínamo, do Tião Macalé, idolatrava – não há outro verbo – Heleno. Era a única coisa de que ele não desdenhava: a idolatria. E jogar futebol, evidente.

Corri, Alain e eu corremos, atrás dele. “Ei, Heleno! Heleno!” E isso e aquilo. Ele e o amigo estavam jogando areia um no outro. Estou vendo o calção de Heleno. Calção de time de futebol. Negro, lacinho para fora na altura do umbigo, um número em branco do lado esquerdo. Quase que juro que eram 3 dígitos.

Estávamos quase ao lado de um dos gols do Lá Vai Bola, que tinha seu campo ali mesmo. Passei a bola branca de vôlei para ele. Fui para o gol. Folguei, “Chuta, Heleno, chuta!” Ele perguntou, “Você pega mesmo?”. Disse que sim.

Heleno de Freitas levou minha bola de vôlei, aquela comprada no “Lá em Casa Brinquedos” na avenida Copacabana, 120 mil-réis, botou debaixo do braço, contou onze passos a partir do centro da baliza (Heleno com minha bola debaixo do braço e pronto para chutar, meu Deus do céu!), fez um montinho na areia, arrumou a redonda, pegou distância e chutou. Mandou uma cacetada daquelas. Se eu toco no bola, iam embora meus dedos. Heleno disse, “Foi gol”. Não discuti. Daí ele saiu correndo com o amigo pela areia e caíram na água.

Eu e Alain fomos atrás. Eu jogava a bola para Heleno de Freitas. Ele devolvia. Heleno me devolvia a bola cabeceando, Heleno me devolvia a bola com as mãos. Gozado, não mostrava na água a mesma elegância ou desaforada petulância que esbanjava no campo e que, possivelmente, além de ele ser boa pinta e ter carro esporte em dois tons de azul, fora o motivo de minha, digamos assim, admiração, que é para eu parecer menos frescão. Ou fresquinho.

Assim como veio, foi-se embora com o amigo, sempre correndo, dizendo em voz alta mistérios que nunca saberei o que eram. Lá fiquei eu, as mãos vazias, o coração aos pulos. Passei uns bons tempos indo à praia no mesmíssimo lugar, mesma hora, sempre com a bola, com ou sem Alain, esperando a colher de chá de um segundo pênalti, que acabou não vindo nunca.

Heleno de Freitas, diante de uma bola, não brincava em serviço. Eu passei o resto da vida tentando brincar. Mesmo sem bola. Não demos, os dois, lá muito certo. Ficou, e ainda está por aí, o solzão lá em cima. Sempre ardendo. Sempre queimando. Feito um idiota.”

*Colunista da BBC Brasil

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