6:29RECEITA DE MULHER

de Vinicius de Moraes

As muito feias que me perdoem, mas beleza é fundamental. É preciso que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture em tudo isso (ou então que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa).

Não há meio-termo possível. É preciso que tudo isso seja belo. É preciso que súbito Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora. É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche no olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso que tudo seja belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas

Lembrem um verso de Eluard e que se acaricie nuns braços alguma coisa além da carne: que se os toque como ao âmbar de uma tarde. Ah, deixai dizer-vos que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca fresca (nunca úmida!) e também de extrema pertinência.

É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas no enlaçar de uma cintura semovente.

Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras é como um rio sem pontes. Indispensável que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida a mulher se alteie em cálice, e que seus seios sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca e possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.

Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal! Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxas e que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem no entanto, sensível à carícia em sentido contrário. É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)

Preferíveis sem dúvida os pescoços longos de forma que a cabeça dê por vezes a impressão de nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior a 37° centígrados podendo eventualmente provocar queimaduras do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes e de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e que se coloquem sempre para lá de um invisível muro da paixão que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.

Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que, se se fechar os olhos ao abri-los ela não mais estará presente com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá e que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber o fel da dúvida.

Oh, sobretudo que ele não perca nunca, não importa em que mundo, não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade de pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre o impossível perfume; e destile sempre o embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina do efêmero; e em sua incalculável imperfeição constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.

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