6:39A Reinvenção da Umbanda

por Rodrigo Fornos

“Todo brasileiro, mesmo alvo de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo, a sobra, ou pelo menos, a pinta do indígena ou do negro, principalmente do negro na ternura, na mímica excessiva, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno. Somos um povo novo feitos de povos milenares.” Gilberto Freyre.

Neste último dia sofri um ataque que deveria ter sofrido ao longo de minha pouca existência para compreensão de nossa terra, de nossa cultura, de nossa cidadania, de nosso Brasil. O documentário O Povo Brasileiro, da obra de mesmo nome do antropólogo Darcy Ribeiro, me foi apresentado em momento único para que pudesse realizar pequena contribuição ao que passo a chamar de Reinvenção da Umbanda, praticada neste Terreiro do Pai Maneco por seu dirigente Fernando Macedo Guimarães, filho de Ogum.

Damos, como povo, contribuição de nossas diferenças da originalidade para qualquer cultura. E temos, como diz o antropólogo Darcy Ribeiro, que aceitar o desafio da mistura, que é exemplo do Brasil para os povos. Brasil é país todo inventado.

No começo eram os índios, donos das terras, com suas caras plácidas, sua alegria agradecida a Deus por viver num mundo tão bonito. Depois vieram os portugueses que, maravilhados, escreveram sobre a riqueza desta terra e da felicidade que foi encontrar povo jamais imaginado existir. A chegada dos africanos de Guiné, seguidos pelos Bantus que são os povos de Angola e Congo, e que trouxeram seu valor sagrado ao ferro, à metalurgia, e à crença que natural e extra-natural são inseparáveis. Que visível e invisível caminham juntos. Em seguida, chegam ao Brasil os Gegis, os Nagôs e os Alçás. Os Nagôs trazem seus Orixás e seus Orikis, ou seja, os cânticos. Os Nagôs falam o Iorubá.

Para os Iorubás, conhecidos no Brasil com Nagôs, posto que não é nação, Ketu é terra de Oxóssi e Irê é terra de Ogum, Deus do aço e da tecnologia. O Orixá da vanguarda.

A reverência pelos antepassados juntou-se ao mesmo sentimento e cultura indígena. Começa, então, a invenção do Brasil.

O negro foi o componente mais criativo da cultura brasileira, que é uma colcha de retalhos. Temos a fusão cultural do índio, do europeu e do negro.

Darcy Ribeiro disse que criamos um povo mestiço, misturamos Deuses, definimos uma nova realidade humanística. A coisa mais importante do brasileiro é inventar o Brasil que nós queremos.

Através desse documentário passei a entender um pouco mais sobre o índio, o negro, o português, o caboclo do Amazonas, o sertanejo, o caipira. E, portanto, passo a ter melhor entendimento de nossa Umbanda e seus espíritos. Passo a entender a profundeza e grandiosidade da linha dos boiadeiros, por exemplo.

“O sertanejo é fruto da mistura entre os ameríndios e os brancos mestiços que se deslocaram de São Paulo e Bahia, fazendo a avançar para dentro do Brasil a fronteira agrícola. Criou-se, tendo sobre a cabeça, como ameaça perene, o sol. Arrastando de envolta no volver das estações, períodos sucessivos de devastações e desgraças. É um condenado à vida. Fez-se forte, esperto, resignado e prático. Aprestou-se cedo para a luta.” Euclides da Cunha.

Vai boiadeiro que a noite já vem, guarda teu gado e vai pra junto do teu bem, cantou Luiz Gonzaga.

“A beleza do sertão é ligada ao grandioso. Ele é grandioso e terrível em certos momentos. O que dá a beleza dele uma conotação muito diferente, muito estranha, mas muito forte.” Ariano Suassuna.

Temos, portanto, a umbanda contada por escritores, antropólogos, artistas. Creio ser fundamental nosso conhecimento do Brasil para que possamos continuar reinventando essa religião brasileira. Hoje li os comentários sobre tópico colocado no blog do Pai Maneco que fala da união da energia do médium, do espírito, criando, assim, a terceira energia. Nesses comentários falou-se mais uma vez da importância do conhecimento. E o conhecimento está disponível. Falou-se também da simplicidade daquele que por falta de cultura e conhecimento realiza trabalhos de grandiosidade inimaginável. Está aí a força da Umbanda.

O Brasil criou sua própria língua. Palavras dos negros, dos índios e dos portugueses formaram essa língua tão nossa. Da África conhecemos “mucuiu”, “fubá”, “bunda”, “orixá”, “batuque”, “berimbau”, “cachaça”, “cafuné”, “dengo”, “quiabo”, “tanga”…

Palavras que são, hoje, tão brasileiras quanto africanas. Estão incorporadas em nosso vocabulário, aparecem em nossos dicionários.

O Terreiro do Pai Maneco não é, acredito, apenas um terreiro escola. É, acima de tudo, o terreiro que reinventa, a cada dia, com os pés no chão, essa religião que conta a história de nossa gente. Que tem como fé o amor, a paz, a harmonia, a determinação, a solidariedade, a caridade.

Estamos com as portas do mundo abertas para nos compreenderem. Estamos com o mundo aos nossos pés para mostrarmos o que é sermos amor. Que, por meio de nossa religião, o alento, a cura, não apenas a física, mas a cura do espírito. A cura em sua dimensão maior. A redenção. A tentativa de tornar-se um ser humano cada vez melhor. Através do exercício dessa fé que seremos capazes de mostrar que temos, dentro da Umbanda, o Brasil desde sempre.

Pai Fernando, filho de Acir Guimarães, visionário, que há sessenta anos construiu um prédio de apartamentos sem os aposentos de empregada, tão comuns à época, porque dizia que em um futuro próximo não haveria mais empregadas morando nas casas. Haveria aquelas que diariamente iriam às casas de suas patroas.

Pai Fernando que nos incita, incentiva, exercita a transformação através do pensamento, da ação. Irmão de Roberto Guimarães que também traz contribuições por meio do livre pensar. Somos parte dessa família, parte da família de Akuan, de Pai Maneco. Mas, acima de tudo, parte da família da Umbanda.

Essa Umbanda vem sendo inventada desde muitos, centenas, milhares de anos antes de seu aniversário de 101 anos no dia de amanhã. Somos parte disso. Continuaremos a reinventar nossa Umbanda para o amanhã.

Hoje saudamos a Nação Brasileira. Saudamos a raiz Brasileira. Saudamos a história de povos e nações que, pela sua fusão e mistura, são verdadeiramente brasileiras.

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4 ideias sobre “A Reinvenção da Umbanda

  1. lina faria

    Belo perfil da raiz cultural brasileira.
    Mas não podemos esquecer do Candomblé.
    Sem esquecer tb. que o paranaense genuíno nasce da cumplicidade, respectiva, entre escravos fujões dos senhores de terra, e os indios fujões dos jesuítas.
    Um com o know-how, adquirido com os brancos, da criação do gado e outras pecuárias vindas da Europa, o outro com a experiencia adquirida com os jesuitas, da agricultura, indo pois do extrativismo à produção. Ambos com grande domínio mateiro.
    As duas etnias, poéticamente falando, sem encontram sob as “matas couve-flor” das araucarias, onde nenhum dos renóis ou outro branco qualquer teria habilidade em achá-los, e alí desenvolveram a cultura dos faxinais. Assim nascem os paranaenses.
    Acho que esse fenômeno diferencia a Umbanda do Candomblé.
    Ambos cultuam as matas, mas a vegetação geográfica, as araucárias couve-flor, o mate, a situação politica de ocupação acabam determinando mais força à Umbanda por aqui.
    Temos também o Candomblé representado consistentemente desde a década de `70, provavelmente vindos no enxoval dos deserdados do café.

    Necessário o resgate e apresentação do Rodrigo Fornos ao Pai Maneco e seu belo trabalho, mas ainda tem que se trabalhar e respeitar a cultura do povo do Candomblé. Há muito preconceito sobre eles e pouco esclarecimento.

  2. Rodrigo Fornos

    Querida Lina!
    Concordo com você.
    Como sou Umbandista praticante, falo apenas daquilo que conheço.
    A diversidade, a tolerância e o respeito são fundamentais para o engrandecimento cultural do Brasil.
    Obrigado pelo carinho!
    Um beijo do,
    Rodrigo

  3. Raul Urban

    É bom, no andarilhar do cotidiano, repensar um pouco essa espiritualidade um pouco esquecida, se olharmos o quano ela é fruto, no Brasil, da somatória étnica, da somatória dos valores intrínsecos do que assimilamos enquanto prontos para reavaliarmos, diariamente, os Darcy, os Gilberto e os tantos outros que migraram pelo mundo da negra sabedoria dos orixás. Parabéns, Rodrigo – e te cumprimento como filho de Ogum, por teres dado a cada um de nós, enste espaço, um releitura do que é fundamental para nos olharmos no espelho e redescobrirmos o quanto temos de magia a dar, a receber, a compartilhar. Abr do Urban

  4. Fátima Silva

    Sendo eu de origem cabocla, quando conheci a Umbanda, por Ela me apaixonei. Faz apenas 4 anos, mas a cada dia procuro estudar, lê, participar de cursos para saber um poquinho mais a respeito desta apaixonante religião que tanto nos ajuda. Obrigado.

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