6:33Ciccarino, só para profissionais

por José Maria Correia

Vicente Ciccarino sempre foi um privilegiado.

Galã da minha época de juventude, sempre andou bem becado e dirigiu luxuosos carros importados e da moda.

Um homme à femme.

Com tudo isso namorava as meninas mais bonitas da cidade, aliás, não só namorava como casou com uma delas, Cinthia Maceno, depois esposa do Carlos Jung, uma princesa que de tão linda e delicada já virou anjo no andar de cima.

Mas como o velho da longa barba branca nunca dá tudo para uma única pessoa, o Vicente também teve seus problemas, como todos nós mortais, uma confusão da mocidade o obrigou a andar acompanhado de duas bengalas, o que, se prejudicou a mobilidade, não lhe diminuiu o porte de dandy.

E como todo cavalheiro, o nosso Belo Brummel, assim como o seu inspirador, aquele que foi o homem mais elegante de Londres na belle époque e conselheiro do Príncipe deGales, o futuro rei da Inglaterra, não podia prescindir de clube exclusivo e de um bar. Acontece que, para os padrões do Vicente, que havia morado no Rio de Janeiro no final da década de 60 e freqüentado locais emblemáticos como o Antonio´s e o Florentino, onde fazia ponto a intelectualidade carioca, de Tom Jobim a Vinicius de Moraes e o chamado Jet Set das mulheres elegantes, não poderia ser qualquer bar.

Os que existiam em Curitiba, mesmo os mais luxuosos e bem decorado,s não preenchiam os requisitos sofisticados exigidos pelo nosso personagem.Vicente então tratou de abrir o próprio bar .E modesto como ele só, não vacilou ao escolher o nome e a homenagem.

CICCARINO, comme Il fault.

Meticuloso e democrático em suas decisões, primeiro reuniu alguns amigos mais próximos, ouviu sugestões, depois contratou arquiteto, chefe de cozinha e somelier – ec riteriosamente delegou as responsabilidades pelas escolhas.

Adega:Vicente; Menu: Vicente; DJ: Vicente; Decoração: Vicente; Marketin: Vicente; R.P: Vicente; Administração: Vicente.

E o extraordinário é que tudo deu certo e o bar bombou lotado do primeiro ao último dia em que funcionou.

Havia um detalhe: Vicente selecionava os freqüentadores no estilo Pitt Bull, como se fosse o próprio Steve Rubbel, o lendário proprietário da fantástica mega boate-disco de New York dos anos 80 – o Studio 54.

Steve, amigo e parceiro de Andy Wharol, Truman Capote e da família Kennedy, costumava ficar em pé sobre um estrado na porta escolhendo pessoalmente quem podia ou não entrar.

Ninguém me contou, eu e minha mulher Angel estivemos lá e não só fomos admitidos como dançamos na balada próximos de Margaux Hemyngway, Cher e Bianca Jagger. Ali vimos milionários maduros que chegavam em limusines acompanhados de modelos serem barrados às pencas (detalhe: nós brasileiros não nascemos para sermos barrados a não ser em nossa própria terra).

Com o Vicente esse ritual de admissão era jogo ainda mais duro. Se não gostava da pessoa ou não ia com a cara, não vacilava em dizer na lata:  “A casa hoje estáreservada”.

Reinava absoluto atrás do balcão, próximo das garrafas de scotch e dos CDs de Jazz que ninguém podia tocar, tudo no melhor estilo daqueles personagens barmans de filmes clássicos americanos de farwest que impunham respeito com uma carabina calibre 12 de dois canos serrados.

Cultivava seu traço genético mafioso para não trair as origens italianas da honorável famiglia. Como vim de outros carnavais e o conhecia de longa data, comigo Vicente sempre foi gentil. Me conhecendo como Delegado, às vezes desabafava indignado: “Veja quefalta de respeito, Zé Maria! Onde já se viu a Polícia Militar vir multar os carros da nossa turma só porque estão todos em cima da calçada”.

Com todo aquele jeito, Vicente, embora aparentasse, não era nada misógino. Vivia cercado de belas mulheres, algumas suas amigas, outras jovens free lancers dissimuladas, e muitas colegas de passarela de seu filho Sandro, um rapaz bonito e carismático, modelo de sucesso nas principais cidades da Europa.

Na realidade ele desenhara para si um comportamento ambivalente para com os freqüentadores, como forma de charme e marketing que lembrava um pouco o irritado e gozador velhote Perly, outro ícone da noite e que também tinha muitos seguidores.Vicente criara uma Persona adaptada ao seu phisyque de role e se divertia com isso. Representava o mal humorado, mas no fundo e na superfície era e é um tremendo boa praça, querido pelos amigos verdadeiros e fiéis que lotavam o seu bar para dividir as solidões, desfrutar de boa companhia e longos papos em uma boêmia saudável e tranqüila e, é claro, de uma bebida honesta e de boa qualidade. pois nem só de pão vive o homem.

Gostava também de demonstrar um pouco da alma socialista redistributiva, mesmo que, por ironia, não era incomum que alguém adquirisse uma garrafa de scotch, recomendando que o Vicente a guardasse e, ao voltar no dia seguinte, já a encontrasse esvaziada.

Comigo aconteceu mais de uma vez. Em uma delas com um ambicionado Jack Daniels12 anos onde, depois de pagar, etiquetei meu nome, com todo cuidado, para que me fosse reservado.

Na tarde posterior, cheguei inspirado e ansioso para o happy hour que desfrutaria em uma poltrona de couro da aprazível varanda. Porém, para minha decepção, só encontrei o casco na prateleira sem uma mísera gota do precioso Bourbon. Ciccarino com a maior naturalidade explicou: “Servi para os seu amigos, o Pedro Longo e o Pereirinha, mas tem mais outro aí no estoque que você pode comprar.”

O restante do que hoje se fala é parte verdade, parte folclore, mas que o bar fazia parte do roteiro obrigatório dos colunáveis, políticos, intelectuais e empresários da cidade, tipo Who’s Who, era inegável.

Existem muitas histórias. Eu mesmo, que morava a uma quadra do bar e era dirigente do vizinho PMDB na Rua Vicente Machado, sou testemunha e partícipe de várias. E  foi na companhia de Governadores e Prefeitos que levei ao Ciccarino, e todos os políticos influentes que vinham de Brasília para os eventos partidários.

Íntimo do Vicente e membro da restrita confraria, sempre consegui boas mesas para meus convidados, entre eles Michel Temmer, alguns ministros do Supremo Tribunal Federal e até o Daniel Ortega, Comandante da Revolução e reeleito Presidente daNicarágua, para horror do Nego Pessoa, entre muitos outros.

Mesma sorte, entretanto, não teve outro dândy, o boa praça Gláucio Geara, que chegou em um dia de lotação plena com o então candidato a Presidente da República Ciro Gomes pretendendo prestigiá-lo – e não conseguiu mesa. Vicente às vezes agia para exercitar seu sadismo sazonal e não perderia a oportunidadede adicionar ao seu currículo ter barrado um Presidente o que com certeza no dia seguinte lhe rendeu boas risadas.

Ciccarino é definitivamente uma daquelas raras pessoas que os franceses denominam como “habité”, o que, na má tradução, dir-se-ia um habitado.

Alguém que não é apenas pleno em reunir gente em volta de si, em sua casa, em seu domicílio, em seu bar, mas em si mesmo, em seu inside , um possuído.

Aquele que reúne , distrai , provoca, encanta, e é capaz de ser hostil, rude, deprimido, feérico, amoroso e gentil, tudo ao mesmo tempo. Não há melhor definição de ser humano. Por isso escolheu abrir um bar. NOSSO CICCARINO

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6 ideias sobre “Ciccarino, só para profissionais

  1. Jeremias, o bom

    Que texto espetacular. Mas sendo da lavra do Zé Maria, não se poderia esperar menos.

    Freqüentador que fui do Ciccarino, nos anos 90, corroboro das percepções do autor.

  2. Emerson Paranhos

    Com todo o respeito ao Dr Zé Maria, a quem respeito muito, e, como tenho certeza que a descrição dele é verdadeira, infelizmente este Ciccarino não passa de um chato.

  3. dado andrade

    Curitiba já não tem mais um BAR.É uma pena.Progride pra um lado e anda de marcha ré para o outro.
    Ciccarino,ainda dá tempo de montar outro !!!!!

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