9:06Ôôôôôô

por Ivan Lessa*

Allah-la-ô, ôôôôôô, mas que calor, ôôôôôô. Atravessamos o deserto do Saara, o sol estava quente e queimou nossa cara!

Esse, como todos sabem, é o início da marchinha imortal de Haroldo Lobo e Nássara que, na gravação de Carlos Galhardo, abafou no Carnaval de 1941.

Leio agora que, com a volta dos blocos de rua e de muitos bailes carnavalescos, as composições feitas exclusivamente para a ocasião estão voltando e sendo cantadas com aquelas que viraram clássicos do tríduo momesco.

Outros carnavais, outros tempos. Pergunto-me se o politicamente correto, aliado aos bons modos, aceitariam hoje a esplêndida composição de Haroldo Lobo (louvado seja) e Nássara (louvado seja) que, insisto em lembrar a tempo, deve ser cantada e grafada exatamente como iniciei esta colouna.

A grafia tem de ser a antiga, verdadeira e única (louvada seja), nada de Alá (louvado seja), mas sim Allah (louvado seja), seguido de um la (não precisa ser louvado), calor (que vocês conhecem e tanto louvam) e – atenção que isto é importantíssimo – seis ôs. Nem cinco e nem sete. Seis. Seis ôs.

Marchinha e religião devem ser respeitadas em sua íntegra, religiosamente, adianto em avançado estado de redundância. O que interessa, no entanto, é se, hoje em dia, mereceria o nihil obstat das autoridades que zelam pelas folias de Momo nestes dias.

Somos um povo bom e educado e, como de hábito, não queremos ferir estes ou aqueles outros elementos de nossa ou qualquer outra sociedade multiétnica. “Multitudo”, para dizer, em bloco e no cordão, a verdade.

O pensamento se me ocorreu quando li no jornal semana passada que as Nações Unidas foram obrigadas a admoestar com um puxão de orelha a França pelo fato de que este país (que aliás nos deu também graças ao grande Nássara outro grande sucesso de carnaval, a marchinha Balzaqueana) recusar à sua comunidade sique, ou sikh, se quisermos ser puristas, o uso de turbantes em fotografias para documentos oficiais.

Um sique sorrindo com seu turbante amarelo ou branco na frente da torre Eiffel pode; no passaporte, não.

Segundo a ONU, em pronunciamento oficial, sem turbante ou camisa listada, a França “violou a liberdade religiosa” ao proibir o uso da tradicionmal peça vestuária sique em papelada oficial.

Como todos sabem, o siquismo é uma mescla, ou síntese, de elementos do Islã e do Hinduísmo, que, como religião, adota para os elementos masculinos as barbas espessas que, na maior parte dos casos, dão a volta ao rosto, sobem para a cabeça do indivíduo e aí então passam a ser cuidadosamente envoltas num turbante. O cidadão Ranjit Singh (Singh quer dizer leão e todos os homens da comunidade mundial de 23 milhões de siques são, pois, leões, umas feras), de 76 anos levou o caso para os mais baixos, e depois os mais altos, tribunais queixando-se da discriminação religiosa ao ver negados documentos de identidade, passaporte e carteira de motorista no país em que fincara sua vida e suas crenças religiosas.

Rankit, em cada instância, recusou-se a tirar o turbante, conforme manda a lei nas terras de Sarkozy. Saiu-se vencedor e com o respaldo das Nações Unidas, que recusou os argumentos franceses de que um turbante constitui “risco de segurança”.

Daí minha pergunta: Haroldo Lobo e Nássara precisariam, hoje em dia, das Nações Unidas ou qualquer tipo de respaldo que não da raça bravia dos foliões? Representaria a marchinha com que iniciei este feérica divagação festiva um “risco de segurança”?

*Colunista da BBC Brasil

Compartilhe

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.