7:51Ele era uma referência

por Célio Heitor Guimarães

Não cometerei o exagero de dizer que a decência, a ética, a competência e a moral deixaram de existir no Judiciário brasileiro nesta quinta-feira. Mas o inesperado e lamentável falecimento do professor, jurista, ministro e homem de bem Milton Luiz Pereira abriu um vazio incomensurável, se me permitem o
atrevimento do advérbio, não apenas no mundo jurídico, mas na vida nacional.

Em um tempo em que o Poder Judiciário paga o preço da arrogância e da falta de transparência que sempre o cercou, Milton era uma referência de conduta e de capacidade, mesmo já na inatividade. Juiz com jota maiúsculo, destemido e justo, incapaz de se submeter a interesses menores e/ou a pressão de
poderosos, foi prefeito municipal de Campo Mourão e professor de nomeada. Na magistratura, manteve a mesma postura, séria e modesta, que fazia de seu nome sinônimo de dignidade e honradez. Ouso dizer até que destoava da grande maioria das excelências das cortes inferiores e superiores.

Nos idos de 2001, sob o título “Quando há um juiz no caminho”, narrei para os leitores do velho O Estado do Paraná um episódio da vida de um cidadão carioca chamado Waldemar Cardoso de Sá. Acho que até já me referi a ele aqui neste espaço, mas que peço licença ao nosso Zé Beto para reproduzi-lo
novamente.

O fato aconteceu em maio de 1977, no Rio de Janeiro. Waldemar de repente se viu no meio de um tiroteio entre policiais e bandidos. Ele era o gerente da agência bancária que estava sendo assaltada. Uma bala perdida acertou-lhe a coluna vertebral e Waldemar ficou paraplégico.

O precatório por ele cobrado das autoridades fluminenses foi autuado e  Registrado em maio de 1996 – dezenove anos depois que a má pontaria da polícia carioca interrompeu a atividade do então promissor bancário e o atirou em uma cadeira de rodas. Só que o governo devedor, como costumam fazer todos os governos, não definiu a data para a quitação e a vinha procrastinando.

Waldemar, com amparo na lei, solicitou a intervenção no Estado do Rio de Janeiro por descumprimento de ordem judicial. O pedido foi deferido pelo Tribunal de Justiça fluminense, mas, como sói acontecer, o Estado recorreu ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília. Alegou falta de recursos e a existência de algumas dúvidas sobre a exatidão do quantum devido. Tudo igual a o que tantas vezes já ocorreu em outros Estados da federação.

Só que, no STJ, o Estado relapso, devedor e mau pagador bateu de frente com o paranaense Milton Luiz Pereira, uma das autoridades judiciárias que engrandecem o Judiciário e honram o Paraná.

“Neste País” – sentenciou o ministro -, “credor da Fazenda Pública que não tiver vida longa, levará o seu crédito para o além. É um sofredor numa verdadeira fila de pedintes, a despeito de favorecido pelas leis constitucionais, orçamentária e por decisão judicial. Teve a sua espinha dorsal destruída por um tiro disparado por engano por um policial do Estado e hoje, com quase 70 anos, vive por razões que nem mesmo o próprio sabe, diante da carga estupenda de sofrimentos”.

Milton Luiz Pereira votou favorável à intervenção federal no Rio de Janeiro, como única maneira para garantir o pagamento do precatório em favor do ex-bancário Waldemar Cardoso de Sá. E ainda foi capaz de evocar o pensador André Malraux:

“A esperança dos homens é a sua razão de viver e morrer. Desde a tragédia ocorrida há quase 25 anos, um brasileiro não esmoreceu a sua confiança no Judiciário, força do seu viver para não morrer. Não pode ser desapontado”.

Assim era Milton Luiz Pereira. Um homem que vai deixar muita saudade entre as pessoas de bem e fará uma imensa falta a este país.

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3 ideias sobre “Ele era uma referência

  1. Jair Brito

    Na época em que, em Curitiba, estudantes faziam rádio para sustentar seus estudos – décadas de 50/60 – principalmente os da área de Direito, Milton Luiz Pereira teve atuação destacada como locutor noticiarista da Rádio Clube Paranaense (apresentava as edições de Prósdoscimo Informa). Eu, recém-iniciado na profissão, tive o prazer de ser seu colega.
    Vai deixar muita saudade, sim.

  2. Antônio Dilson Pereira

    Como sempre, o amigo foi perfeito. Tive a honra e o privilégio de gozar da amizade do Dr. Milton, pessoa honrada, justa, educada, incapaz de dar carteiradas. Um homem que, mesmo que sua posição de ministro lhe oferecesse alguns privilégios, não os usufruia. Vi, várias vezes, ele na fila de embarques dos aereoportos, como uma pessoa comum. Mesmo que parecesse um homem carrancudo, não era. Era um homem sério mas que tinha bom humor. Não se dava a arrobos de “otoridade”. Lembro-me de um fato que presenciei. Foi ele indicado pela primeira vez para concorrer a uma vaga no antigo Tribunal Federal de Recursos. Estava eu, em seu gabinete, para parabenizá-lo e lhe desejar sucesso. Nisto entra um colega menos comedido, sem ao menos fazer-se anunciar, e foi logo dizendo: Dr. Milton, conheço os deputados tais, os senadores tais, e foi enumerando as autoridades de seu relacionamento e perguntou: o que eu posso fazer pelo senhor? O Dr. Milton, na sua tranquilidade, respondeu: o senhor vai para casa e reza. Associo-me às suas palavras sobre nosso personagem.

  3. Felipe Rauen

    Endosso o reconhecimento. Ele foi meu professor de Direito Penal e, além de excelente mestre, não perdia e não nos fazia perder tempo. Entrava em sala de aula dando boa-noite e a palavra seguinte já era o começo da aula. Nada de gracinhas, nem de tentar ser simpático para ser escolhido patrono ou paraninfo. Tratava de ensinar e ensinava muito bem. Uma grande perda. Pelo que soube, quis o destino que ele e sua esposa falecessem no mesmo dia, com pequena diferença de horário

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