9:13Brasileiras muito ricas

por Ivan Lessa* 

Tom Phillips é o correspondente britânico do The Guardian no Brasil. Quase toda semana ele bate o ponto no velho e ainda sacudido jornal liberal falando de coisas nossas, nossas coisas.

Acompanha tudo com a maior competência possível, do trivial ao seríssimo, o que é um feito, pois nós esbanjamos nos dois quesitos.

O excelente jornalista “guardião”, por assim dizer, que se cuide.

Já deve manjar de nossas ufanistas empombações verde-amarelas.

Acredito que alguém já tenha narrado a saga de Larry Rohter, do New York Times, que quase é derrubado por um governo, passaporte tomado, expulso do país e incluso em esquecidas leis de outros tempos, outras ditaduras.

O homem, coitado, esteve a pique, conforme muitos queriam, de “ser suicidado” na marra.

Qual era o caso de Rohter (hoje muito bem sempre lá no Times emplacando matéria sobre tudo que lhe dá telha e de seus editores)? O homem do NYTimes cometeu a inocência de mandar um despacho sobre fofocas que corriam às bocas pequenas e largas na época do presidente Lula da Silva. Frise-se: não acusou ninguém, apenas botou o preto no branco sobre “o que se sussurava”, e, conhecendo-nos, creio que os “sussurros” decibelavam mais que o Big Ben aqui do meu lado.

Nesta semana, o bom Tom Phillips mandou pequena reportagem de ¼ de página sobre um programa de televisão, desses que gostamos de chamar de “reality show” (por que essa falta de intimidade com “realidade” e “espetáculo”?) que a Band emplumou e desfraldou no ar pela primeira vez na segunda-feira.

O correspondente sabe o que é notícia.

Pouca coisa acontecendo no planalto, esses feriadões, chuvas, e voltam-se todos à paixão nacional que é a TV, em suas diversas e constrangedoras manifestações: telenovelas e, lá vai de novo, “reality shows”. No caso, esta última modalidade.

Um programa que, mesmo em nossas bizarras terras, está dando o que falar (chequei), tal de “Mulheres Ricas”, que Phillips dá uma boa pala do que seja e eu já posso visualizar com o “sick bag” (confiram, adotem) do lado.

Seguinte: tudo como o nome indica. Brasileiras riquíssimas que espocam, graças aos labores de seus cônjuges, né?, a uma razão de 19 por dia desde 2007, segundo um estudo recente, me informa o jornal britânico.

Apesar de tudo, não me esqueci (estou fora há muito tempo) nem do inédito caso com o Larry Rohter nem daquele com o episódio dos Simpsons que beirou a proibição em todo o território nacional por mostrar macaquinhos dançando nas ruas do Rio, que também virou afronta à nossa dignidade.

Transcrevo o Phillips, que eu não sou besta, “o Brasil passou a ser uma das sociedades mais desiguais na Terra: números divulgados pelo governo em dezembro mostram que 11 milhões e meio de brasileiros viviam em favelas no ano passado – 4 milhões e 500 mil a mais do que em 1991.”

Mas ao “reality show”, que essas fantasias social-científicas são um lixo. (Quem nos sacou foi o Joãozinho Trinta, o primeiro a piar, ao menos em voz alta, que pobre gosta mesmo é de luxo e riqueza, os dois ingredientes que abundam para valer no “Mulheres Ricas”.)

O formato do programa é simples e simplório, inda que vexaminoso. Cinco mulheres são acompanhadas pelas câmeras desfilando orgulhosas suas posses e, sem o saberem, por suas posses possuídas.

E tome jatinhos, champanhe Cristal, cachorrinhos malteses que só bebem água mineral, guarda-costas, vestidos da Chanel e Lamborghinis.

Conforme o “reality show” se anuncia, trata-se de um “insight” no universo “das viagens em carros de luxo, joias, compras e muita champanhe.” Só não disseram, “conheça você, ilustre passageiro, os cinco belos tipos faceiros que têm todos os problemas do mundo, menos o do dinheiro.”

E tome a casa (mansão, palacete) das cinco no Rio, São Paulo e viagens de compras em Paris e St Tropez (uai, cadê Nuiórque, ó riquísssimas?).

Lydia Sayeg, de 44 anos, confessa logo no primeiro episódio, “Ser rico é uma beleza. Uma benção.” E Val Marchiori, de idade não identificada, uma “socialite” (não eram “emergentes” até há alguns anos?) paulista e apresentadora de TV, que, numa exposição de novos tipos de aviões, considera a possibilidade de comprar um jatinho de R$ 30 milhões, alegando que o atual dela está meio velhinho, enquanto degusta (as “mulheres ricas” degustam, não bebem ou comem) uma taça de champanhe Cristal com o balconista, se balconista de jatinho o homem for.

Tuitou-se e blogou-se para valer depois do “show”. Um blogueiro sugeriu, informa o correspondente, que a presidenta Dilma bote em sua agenda o ítem “erradicar a extrema riqueza juntamente com a extrema pobreza.”

O programa agora é sucesso garantido.

Até que outra transmissora apareça com a fórmula ideal para rivalizar as “Mulheres Ricas”: “Homens Ricos”. Vai nessa que é uma boa, Eike Batista.

*Colunista da BBC Brasil

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2 ideias sobre “Brasileiras muito ricas

  1. Zaga

    O tempo distante do Brasil fez o Lessa desconhecer certas peculiaridades da vida brasileira. Estranha, por exemplo, a ausência de Nuiórque no roteiro das milionárias brasileiras. Acontece, Lessa, que Manhattan faz parte hoje do roteiro de “falsas ricas” que fazem de Nuiórque a sua 25 de Março ou Ciudad del Este. De lá abastecem suas butiques…. Que Natal, que nada! O negócio é ir às compras como legítimas sacoleiras e depois aparecer nas colunas sociais retornando de “giro internacional”.

  2. JJ

    Ótimo, perfeito, na mosca. As pessoas ricas desconhecem completamente a realidade das que não são ricas, que são a imensa maioria no nosso país.

    Ivan Lessa é um dos jornalistas brasileiros mais brilhantes e é por seus méritos que trabalha nada menos do que na BBC – um ícone do bom jornalismo mundial.

    Como Diogo Mainardi, que mesmo morando em Veneza possui uma visão crítica acurada do nosso país, Lessa é perfeito nas suas estocadas.

    Hoje em dia é possível ser um jornalista muito bem informado em qualquer lugar do planeta. Basta querer ser. Lessa e Diogo, por exemplo, são, como são os craques do Manhattan Conection, lá em New
    York.

    Parabéns, Zé Beto, por estar atento e por trazer estes comentários tão precisos para todos nós. Você é outra demonstração de que não devemos ficar vivendo agarrados ou contidos só na nossa cidade, ou bairro – como a maioria é.

    JJ

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