20:27A crônica de Natal

por Ivan Lessa*

Na verdade ela, a crônica de Natal, é um apetrecho que faz parte dessas comemorações de fim de ano. Todo cronista brasileiro, gente classuda e cheia de manha, quando os havia, tinha a sua engatilhada.

Era sempre a pior crônica do ano, não importa se você se chamasse Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria, Drummond ou Clarice Lispector.

Um dia vagabundo em que nada conhecia e eles, os cronistas, davam um banho, alguns à fantasia. O gato (nunca se deve dizer seu verdadeiro nome) comeu todos.

Hoje, que se tem três ou quatro, já é muito. Bloga-se. Blogam-se os blogs de Natal. E tome sino. Um bimbalhar de ensurdecer frade de pedra. Blim-blom, blim-blom.

A rigor, estas linhas, que digito por mero cacoete ou hábito, talvez não passem de uma (i)vã tentativa de manter uma vela de verdade acesa no matéria barata que virou tudo – árvore, enfeite, presépio, presentes.

Talvez não seja mais que uma vontade de jogar areia na presepada (a falta de graça e imaginação no jogo de palavras é culpa da estação) que reina ao menos no mundo cristão.

Estar no Afeganistão ou no Iraque pacificado pelo Obama (ser irônico é um condimento da época) é, seguramente, menos nocivo à saúde física e mental, do que leitão, presunto, peru ou presente eletrônico.

Jogar areia no sentido de que, a rigor, ela, a “crônica de Natal” deveria “estar indo para o ar” (a falada “nuvem”?) na sexta, dia 23, para pegar a enxurrada de feriados, feriadinhos e feriadões que deverão se seguir.

Agora, vida mesmo, dessas danadas de chatas, essa só depois do dia 2 de janeiro de 2012. E olha lá, para quem vive no Reino Unido será ano de Jogos Olímpicos, conforme todos os noticiários de televisão insistem em lembrarem o tedioso tema todos os dias em todas as horas por pelo menos cinco minutos.

Eu me perdi. Deve ter sido a gemada reforçada com vinho do Porto que tomo sozinho como um personagem rabugento de Dickens.

Ah, sim. Por que mandar a “crônica de Natal” antes do dia adequado? Porque tudo indica que não terei forças dentro de 48 horas.

Comecei a me perder, a me desorientar, na segunda-feira, quando taquei serenamente, neste cantinho que me cabe, que o Sol nascia a oeste.

Deve estar nascendo assim ao menos para mim. Os duendes que auxiliam Papai Noel entortaram e, desde o começo da semana, deram para botar para quebrar aqui em casa. Literalmente.

A televisão transformou 12 canais digitais em expressionismos abstratos mudos como esse filme, O Silêncio, de que tanto falam.

A cortina de meu quarto quebrou e recusa-se a abrir, roubando-me do ralo sol de dezembro que banha por uma uma ou duas horas o aposento a que chamo, sem ironia ou vergonha, de quarto/escritório, que, agora, como minha vida interior, anda às escuras.

Três lâmpadas direcionais de 40w iluminam minha cela, tal como chamo isso que sobrou de minha vida, quando nela cumpro parte de minha sentença (esbanjamento ilegal de joie de vivre antes do tempo, disseram os juízes, meus algozes).

O resto da casa também trama contra mim. A pequena e outrora fiel árvore de Natal de plástico, com seus enfeites bobocas, virou na mesinha da sala, deu curto e eu tive de me virar também, descurtificando sem fôlego o desastre diante do espanto e medo da gata, que já não é, como eu, broto.

Olhamo-nos, mudos como o “falado” filme que citei acima, para ver quem envelhece mais e morre primeiro.

Continuando: o banco errou no pagamento de algumas contas. Uma tarde perdida conversando com gravações que, como o resto do mundo, só sabia me deixar aguardando impotente em hold. É, estou em hold há uns bons 20 anos.

A vizinha de cima bateu na minha porta, muito educada (trabalha na City, e é ruiva natural, porem feiosa), para me avisar que, na noite de sexta-feira, vai dar uma recepção e que iria procurar bimbalhar o mais baixo possível. Duvide-o-dó.

Agora, é sentar na poltrona que me detesta e eu a ela e, juntos, esperarmos a tempestade declarar missão cumprida, como um Iraque pacificado desde a época do George W. Bush, e aguardar até que o sistema de aquecimento dê o prego.

Em geral, quando essas coisas batem, batem com força e para valer. Fico, com a gata a me espionar, a tentar ribombar e não bimbalhar. Acabo sendo ribombado e bimbalhado por força das circunstâncias e contra minha vontade. Claro.

*Colunista da BBC Brasil (texto publicado no dia 21 de dezembro)

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