19:00Jornal da guerra contra os taedos

de Manoel Carlos Karam

Medo de guerra. Cada um cava a sua trincheira no lugar que bem entender. Cada um escolhe o inimigo que bem entender. Cada um escolhe os aliados que bem entender. Cada um escolhe as armas que bem entender. Tem tanta escolha que não tem escolha. Para bom entendedor. Você não faz idéia, meia guerra basta. Viver perigosamente e manter a fama de mau. O circo está armado. Até os dentes, para não perder a oportunidade. A oportunidade de morder o inimigo. Fazer picadinho. Fazer trocadilho. Sem medo, se for possível. Dançar conforme o avanço das tropas. Confundir as frases a guerra acabou e o sonho acabou, fica tudo divertido, um pesadelo sem fim. O meio para isto é deitar com a idéia fixa de que a cama é uma trincheira, espantar o sono e permitir a chegada do sonho. As trincheiras circulares. Sem esquecer de abstrair o inimigo, é mais seguro. Torcendo para que o inimigo concorde. Ou que pelo menos esteja sem munição. Quem já fez a experiência abstraindo apenas a munição conta que o inimigo desarmado acabou aproveitando o tempo para tirar uma soneca, espantando o sonho, ficando somente com o sono. Abstrair o sonho pode parecer difícil, mas não é, não. Mas é preciso ficar de olho aberto para evitar frustrações. Sem inimigo ou com o inimigo dormindo é quase a mesma coisa. O medo é o mesmo. E se a munição acordar de repente? Diz a lenda que ganha a guerra o lado que tiver mais banqueiros. Vivos ou mortos. O arsenal herda dos mortos, os canhões tomam empréstimos dos vivos, os soldados batem palmas, mas somente os que não estão segurando granadas. Fica tudo divertido, tudo portanto confuso,
assim são as guerras. Assim é o medo, é assim que ele se manifesta. Não há exatamente um bater de queixo. Ele se manifesta por escrito: estou com medo, nesta ou noutra língua, com esta ou outra caligrafia. Às vezes a palavra é socorro, mas ela foi abstraída de algumas guerras porque era usada em excesso e estava em vias de extinção. Sem a palavra socorro, como caminharia a humanidade? Uma nota ao pé da página poderia lembrar que não é apenas de sonhos que vive o sono, que enquanto se dorme também se delira. Para o delírio da platéia, se a platéia permitir este jogo sujo de palavras. Sujo de lama das trincheiras. E os votos de que os seus sonhos se tornem realidade. Que a realidade se torne delírio. Que o delírio se torne sono. Que o sono abstraia o despertador. Todo sujeito que acorda cedo e vai para a guerra deve levar uma frase decorada: saio da vida para entrar na história. Ela pode ser necessária. Não é de bom-tom morrer em silêncio, menos ainda limitar-se a um grito lancinante ou grito que o valha. Uma frase dá o bom-tom dramático para o último gesto de quem vai mais cedo para o chuveiro. Tendo ouvintes atentos, a frase pode acabar na lápide, transformar-se em atração turística do cemitério. Ou ser aquele título que o biógrafo do soldado desconhecido estava quebrando a cabeça para encontrar. A frase pode ser usada também em caso de conflito nuclear porque é curta. Estes conselhos são de uma senhora que entende do assunto, Pearl Harbor. Entende do assunto mas odeia trocadilhos. Tem medo. Pearl Harbor tem medo. Quem tem cu tem medo. Medo de bêbado não tem dono. Silent night. As tropas desembarcaram pela chaminé. A casa tremeu. Um saleiro balançou sobre a mesa e espatifou-se aos pés da lareira. Volta e meia o medo tem sal em excesso, meia- volta e o medo tem sal de menos. Difícil o dia em que o medo tem sal no ponto. Gestos dramáticos do medo são comuns em comédias corajosas. Lança-se a taça de champanhe contra a lareira. O gesto brusco se equivoca e apanha o saleiro, que estava ao lado da taça. O sal misturado aos cacos de vidro — cristal é mais dramático — espalha-se pela lareira ameaçando o avanço das tropas pela chaminé. Delírio. Eufemismo para medo. O medroso aplica o truque sujo de passar-se por delirante. Não é novidade. Foi assim com Napoleão. O delírio de avançar pela Rússia era o medo que Napoleão tinha da Rússia. Em vez de delirar em Moscou, Napoleão deveria ter delirado em Roma. É mais fácil chegar em Roma. Para Moscou há um único caminho. Aonde você quer chegar com isto? Não quero chegar em Roma ou Moscou, caixa-pregos ou cafundó-do-judas. Não quero sair daqui. É aqui o lugar aonde eu quero chegar. Não, isto não é filosofia, não. É só mais um jogo sujo de palavras. O jogo sujo do professor de história. Houve uma guerra ao sul da América do Sul. Eram 3 contra 1. O professor ensinou que os 3 estavam em desvantagem porque o 1 tinha um dos melhores exércitos do mundo. Que mentira filha da puta, professor. Os 3 não tiveram medo, é verdade. Estraçalharam o 1 sem medo. A guerra é uma travessura, dizia alguém que não me lembro quem era, só recordo que estava armado. Concordei com ele. Eu não estava armado. Se estivesse, teria sido a mesma coisa. Não tenho vocação para duelos em main street. Só vocação para o medo. Na hora do duelo, eu repetiria o que venho repetindo insistentemente: esta cidade é pequena demais para nós dois. E iríamos ambos para uma cidade maior. Aquela coisa de ficar de pernas abertas no meio da rua para ver quem é mais rápido no gatilho é até meio ridícula. Prefiro trincheira. Dá para enterrar a bunda na lama e esperar a guerra acabar. Ser prisioneiro de guerra é algo que não passa pela minha cabeça com a mesma agilidade com que passa pela cabeça do inimigo. Isto se considerar que o inimigo tem cabeça, o que é difícil porque, como se sabe, inimigo é bunda da cabeça aos pés. É comum o inimigo morrer porque, em vez de enterrar a bunda na lama da trincheira, enterrou a cabeça. Mas o que fica mesmo é a idéia de mais um delírio romântico. Trincheiras? Onde já se viu guerra de trincheiras! Que coisa mais antiga! Tão antiga que merece ponto de exclamação. Cada um cava o seu ponto de exclamação no lugar que bem entender.

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Uma ideia sobre “Jornal da guerra contra os taedos

  1. Solda

    Bah! Cada vez eu fico mais espantado. Desde que conheci o Karam (década de 70) ele sempre foi um jornal de guerra contra os taedos, 24 horas por dia.

    Solda

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