8:58O Natal dos sem-álcool

por Cristiane Segatto*, da revista Época

Pela inclusão social dos que não bebem

Festas de fim de ano são uma prova de fogo para quem não bebe. É tempo de amigo-secreto, confraternização da firma, encontro dos formandos da turma de 1900 e bolinha, ceia de Natal, farra de Reveillon.Tudo obrigatoriamente regado a álcool. Quem não bebe (seja lá por qual motivo) precisa demonstrar um talento inabalável para a diplomacia. É preciso muito jogo de cintura para contornar a avacalhação geral sem perder a pose. Ninguém se toca que o colega sóbrio não bebe porque toma antidepressivo. Ou anticonvulsivante. Ou outro remédio qualquer que não pode ser misturado ao álcool. Ou não bebe porque, simplesmente, é um alcoólatra em recuperação.
“Na nossa sociedade, é difícil aceitar uma pessoa que não bebe. Não beber é como uma ofensa”, diz o psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, presidente-executivo do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA). “Quem não é alcoólatra tem dificuldade para enfrentar essa pressão social. Imagine o que acontece com os que são alcoólatras”, afirma.

Cerca de 19 milhões de brasileiros sofrem de dependência ou abuso de álcool. Abuso significa uso com problemas. São as pessoas que bebem e chegam atrasadas ao trabalho. Ou provocam acidentes de trânsito. Ou agridem alguém.

Até que elas decidam se tratar, vivem um teatro. Tentam enganar a si mesmas e aos que estão ao redor com a ilusão do autocontrole. Quase todas as manhãs observo de longe um velhinho que vive algo assim. Ele encosta no balcão da padaria e o funcionário pergunta:

– O de sempre?

– O de sempre. 

O rapaz entorna a pinga até preencher a metade de um copo americano. Coloca o copo sobre o balcão e, ao lado dele, uma garrafa de soda limonada. Aos poucos, o velhinho vai misturando os dois líquidos transparentes. Quem para no balcão para comer o pão com manteiga de todos os dias reconhece o freguês da “soda limonada”.

Ele tem olhos tristes, cabelos brancos, corpo frágil. Fico me perguntando se algum dia tentou se tratar. Ou se ainda não se deu conta de que é dependente.

Dedico essa coluna de Natal a todos os dependentes que tiveram a coragem de assumir o problema e de persistir no tratamento. Festas de fim de ano podem ser momentos difíceis. Resolvi conversar sobre isso com o psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, que tem uma enorme experiência com dependentes de álcool e drogas.

ÉPOCA – As festas de fim de ano aumentam o risco de recaídas?
Arthur Guerra de Andrade – Elas podem aumentar a vulnerabilidade dos pacientes de risco. Um número assustador de recaídas ocorre nos momentos bons da vida. Quando a pessoa está numa celebração ou quando recebe uma notícia boa. Cerca de 30% delas ocorrem quando o paciente recebe uma promoção, tem um filho ou em outros acontecimentos positivos.

ÉPOCA – Basta um gole de álcool para a pessoa recair?
Andrade – Quem recai não admite que tem uma doença (o alcoolismo). Quer mostrar que é capaz de beber moderadamente, sem perder o controle. Acha que vai beber dois uísques e conseguir parar. As pessoas precisam entender que alcoolismo não é uma questão de falta de força de vontade. É um processo bioquímico.

ÉPOCA – Que cuidados as famílias e os amigos devem ter nessas celebrações?
Andrade – Muitas vezes os familiares acham que podem oferecer ao alcoólatra meia taça de Prosecco só na hora do brinde. Isso não funciona. A molécula de etanol entra nas papilas gustativas e o cérebro já é alertado. Conforme o álcool começa a circular no organismo, o cérebro vai pedindo mais. É irrefreável. Para quem já perdeu o controle antes, é tudo ou nada.

ÉPOCA – É impossível estar em tratamento e ainda assim participar do brinde no Natal e no Reveillon?
Andrade – A cada 100 médicos que tratam alcoolismo, 95 vão dizer que uma pessoa em tratamento não pode beber nem uma gota de álcool. Alguns médicos mais jovens ou mais ousados acham que é possível permitir que uma pessoa em recuperação beba socialmente de vez em quando. Tenho simpatia por essa ideia, mas depois de 30 anos lidando com alcoólatras acho que essa é uma ideia romântica. Não me lembro de um paciente sequer que tenha voltado a beber socialmente.

ÉPOCA – Bebidas como cerveja ou vinho sem álcool ajudam ou atrapalham?
Andrade – Atrapalham. Não existe fermentação sem álcool. Essas bebidas podem não dar o efeito embriagante mas ainda assim não são totalmente livres de álcool. Se a pessoa é convidada para um evento e sabe que os amigos vão estar todos bebendo talvez seja melhor nem ir.

ÉPOCA – Por que algumas pessoas nunca vão ter problemas com álcool enquanto outras, na mesma família, vão se tornar alcoólatras?
Andrade – Estudos realizados com gêmeos criados no mesmo ambiente familiar e cultural mostram que um dos irmãos é capaz de beber moderadamente enquanto outro perde totalmente o controle. Não sabemos o que está por trás dessas diferenças. Quem descobrir isso pode ganhar o Prêmio Nobel.

ÉPOCA – A OMS está preparando uma estratégia global para reduzir os danos provocados pelo álcool. Já se fala até em alcoolismo passivo. O álcool vai se tornar socialmente inaceitável como aconteceu com o cigarro?
Andrade – O álcool é muito diferente do tabaco. Ninguém defende uso moderado de tabaco. Mas as pessoas não são contra o álcool. São contra o abuso de álcool. O abuso é de fato um problema seríssimo de saúde pública. Todos nós conhecemos um alcoólatra no trabalho, na família, no condomínio. São 19 milhões no Brasil. Além de prejudicar a si mesmos, eles podem causar danos a outras pessoas ao provocar acidentes e outras formas de violência. Mas essa ideia de lançar uma estratégia global me parece um tanto romântica. Há diferentes padrões de consumo de álcool nas diversas regiões do mundo. São realidades distintas. Ouvi um dia desses que uma das propostas é aumentar o preço das bebidas. Isso não adianta. Só vai estimular o consumo de pinga feita em alambiques clandestinos e outras coisas do gênero.

———

Esta é a penúltima coluna de 2009. Neste fim de ano ofereço um brinde à turma da água com gás, da Coca-cola com gelo e limão, do suco de pitanga. É preciso entender as razões dos sem-álcool. E aceitá-los como são.

*Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 14 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo.
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6 ideias sobre “O Natal dos sem-álcool

  1. roberto prado

    Eu que não bebo simplesmente porque não gosto de ficar bêbado e não tenho nenhuma das desculpas rápidas que o doutor enumera para dar satisfação à sociedade, faço o que? Fico em casa.

  2. Fernando

    Já tive que me abster de consumir álcool por um longo período em virtude de um tratamento com remédios contra depressão. Testemunhei o que se afirma no início da matéria. A pressão social pelo consumo de álcool é imensa. Deixei de frequentar alguns círculos de amigos por esse motivo. Grupos masculinos, principalmente, tendem a discriminar e cobrar veementemente quem não consome álcool ao seu lado. É uma barra.

  3. Parreiras Rodrigues

    Eu me amo cada vez mais e o amor egoísta cresce a cada fim de ano.

    Frequento buteco diariamente – jogo sinuca no bar do Roque e convivo fraternalmente com os pés de cana.

    Sou aceito normalmente e nunca amigo algum insistiu para que tomasse “um golinho só”. Pelo contrário, a cada recusa pela oferta de parte de alguém que desconhece meu “estado de alerta”, só ouço continue assim.

    A fábrica de sorvetes Bapka deveria me homenagear como consumidor e a mineral sem gás Timbú, ídem.

    No Natal, um olho no pernil e outro no Aniversariante.

    Na passagem de ano, um ronco contínuo, em baixo tom e até melódico, como diz minha namorada desde 1966.

  4. Hamilton Luiz Nassif-Londrina

    P. H . N——- Por hoje não. Sigla que o Movimento Carismático da Igreja Católica, nos faz observar e cumprir com determinação. Muitos , se livraram,( mesmo com muito cuidado) da doença. Não acredito,que um pequeno brinde,não leve ao retôrno triste do vício !!!Todo o cuidado é pouco .”Como dizia Baden Powel! SEMPRE ALERTA.

  5. Guilherme

    Muito bom o texto! Vale a lembrança e o pensamento nesse momento de festas. Embriagar para esquecer, fugir do que? dos bons momentos?

  6. Jose maria correia

    Querido Xará,
    Estou sempre atento aos textos em que voce procura dar a sua contribuição para despertar a atenção de todos sobre a grave doença do alcoolismo que tantos males provoca. Sei do que falo porque em mais vinte e cinco anos atuando como Delegado de Policia assisti e vivenciei os dramas de milhares de familias diretamente atingidas pelo efeito devastador da bebida, notadamente a cachaça e outras do mesmo potencial.Perdi amigos e colegas e arrisco dizer que rara é a familia que não tenha um parente também vitima da bebida. Grandes talentos foram consumidos,promessas de vidas generosas desperdiçadas e tantos hospitais recebendo pacientes terminais . Vi e testemunhei o que o alcool pode fazer de negativo. Tantos exemplos me empurraram para longe das garrafas, mas quando estive perto nada encontrei de positivo à não ser o breve período de entusiasmo , a liberação e a verborragia que aos olhos alheios são cenas ridículas .
    Pena que o lucro e a propaganda sejam em termos de apelo anos luz superiores em termos de espaço e mídia ao que é dedicado para a educação e prevenção do vício. Bravo Zé !

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