14:42Cidadão no Bosque

de Nilson Monteiro *

   Dezenas, eu diria centenas, de sons e pios invadem-me em meio àquele chumaço verde encharcado. Sento-me, só, naqueles bancos que nos remetem às antigas pracinhas, namoricos de dedos entre dedos, os primeiros arrulhos de promessas de amor eterno. Quase ao meu ombro, pousa, sem cerimônia, irrequieto e inquieto, salta pra lá e pra cá no encosto do banco. Precisa piar alguma coisa. Tenta traduzir sua inquietação em cantos curtos e graves, às vezes roucos.

   O cheiro molhado das árvores nos aproxima, sento mais alguns centímetros ao lado dele, que, aos pulinhos, sem receio, faz o mesmo. Estamos quase colados, bico a ouvido, cercados pelos plátanos soberanos, pelas três centenas de araucária que dizem ali existir, pelo silêncio das pedras de paralelepípedos artisticamente assentadas e pelas bênçãos da Virgem Negra de Czestochowa, a Nossa Senhora da Polônia.

   Pia o monólogo, nem ligando para meu encantamento com ele e com tudo que nos cerca naquele bosque abençoado pelo Santo Papa João Paulo II em 1980. “Estamos preocupados com a chegada, cada vez perto, da civilização. Já há construções à beira do corguinho. Daqui um pouco eles invadem as nossas árvores, fora o corguinho, coitado, que já invadiram. Nele jogam tudo quanto é tipo de sujeira”.

   Era um sabiá-laranjeira, vestido com sua roupa domingueira, quase cor de cobre, o peito estufado como o de quem pia em nome da comunidade. Eu e minhas velhas bermudas e camiseta domingueira, olhei pra dentro do verdume barulhento, até as rãs, que se reproduzem nos laguinhos formados nos cotovelos das árvores, repicavam o canto do sabiá. “Não, em Curitiba não existe este perigo, os homens públicos estão cientes de sua responsabilidade”, pensei. Ele cortou meu raciocínio: “Não sei. Há muita gente que vem para cá e joga lixo pra dentro do bosque. Há uns jovens e mesmo gente mais velha que emporcalha tudo.
Alguns, na escuridão da noite, até levantam voo em meio à fumaça por aqui. As músicas nesses bares bem pertinho ficam numa altura que quase não escutamos nossos cantos. Tem dias que parece que vão explodir. Sei lá, será que eles não sabem que isto faz mal pra todo mundo? É só uma preocupação, entende?”. E continuou a cantar, pequeno, mas forte, sem parar: “Você sabe, as notícias voam. Meus amigos lá de Londrina disseram que o prefeito está rasgando o bosque, que é uma coisa linda, com árvores centenárias, para passar uma rua dentro…” Entro na conversa de novo, mesmo mudo: “Eu duvido que aqui alguém tenha coragem de mexer um tiquinho em qualquer dos 26 parques da cidade”.

   À esta hora, ele já pousara quase triscando ao meu ouvido, feito um amigo contando segredos ou fatos mais do que conhecidos. Para amigo, tanto faz. “Voando por ai, ouvimos, às vezes, os versos da música ‘Passaredo’ do Chico Buarque: foge asa-branca, vai patativa, tordo, tuim, se esconde colibri, voa macuco… E ficamos com medo, a civilização está apertando, nossos espaços estão sumindo. Sabe-se lá”.

   Há uma cumplicidade religiosa, diria mística, no ar cor de chumbo. Eu consigo distinguir as vestes alvas do Sumo Pontífice ao benzer o Bosque que foi eternizado com sua lembrança, guardando lugar para sete casas representativas da vinda dos poloneses para esta terra, e tento acudir-me na crença. Mas, disfarço. “Você está muito pessimista. Isto aqui é um paraíso com aqueles enormes jardins ali de fora, muito verde, a sensação de liberdade, as pessoas têm que respeitar tudo isto. Não é uma questão de
autoridade de qualquer escalão. É uma questão de cidadania”.

   Ele faz de conta que não ouve e segue piando. Eu, simplesmente pasmo, consigo distinguir um coro de dezenas de Bem-te-Vi e João-de-Barro, ao fundo, em meio a centenas de cantos e sons, endossando o seu líder atrevido. Quase conseguimos nos beijar no rosto, como velhos amigos, ele parece despedir-se, faz alguns voos rasantes e depois se embrenha em meio ao chumaço verde. O almoço dos domingos está sendo servido às mesas ou as famílias já comem sobremesa.

*Jornalista

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