6:19Otan e o mundo

por Ivan Lessa* 

Depois do linchamento de Gaddafi, eu não aguento mais ler sobre o homem, seu destino ou o de pelo menos 3 de seus 8 filhos biológicos.

De 5 em 5 minutos, a televisão mostra os últimos instantes da transição democratizante, patrocinada pela Otan, sem aval da ONU, em que o canalha do maluco do líder há 42 anos da Libia feneceu como uma flor de cáctus no deserto graças a liberalizantes bombardeios feitos por aviões franceses e americanos do comboio em que Gaddafi procurava um novo caminho para a redemocratização de seu país, via seu viés aloprado.

Para variar, celulares registraram seus últimos sangrentos instantes. Muitos deles com a maçã de Steve Jobs. Não se pode mais ir à esquina ou torturar um beduíno sem que um desses odiosos aparelhinhos não registre o fato.

Até domingo, o primeiro-ministro de transição do país agora livre do jugo da torturante ditadura procurava uma maneira de resolver o problema de o que fazer com os mortalíssimos e linchadíssimos corpos de Gaddafi e seus filhos.

Não foi cumprido o mandamento muçulmano de dar-lhe, ou aos filhos, o enterro que o Alcorão e a tradição exigem. Talvez porque não encontrem família alguma da vasta tribo gaddafiana na Líbia. Ou foram linchados ou se mandaram do país.

De qualquer forma, o júbilo continua. Já foi anunciado pelo governo de transição que dentro de 8 meses haverá eleições para um Parlamento.

Este, em sua agenda estafante, além de lidar com a venda escrupulosa do excessivo petróleo que jorra pelo país, redigirá uma Constituição decente para a nova Líbia, ora com aval da Otan.

Façam o que bem entenderem, só peço que parem de mostrar aqueles imagens degradantes na televisão. Jubilem-se, linchem-se à vontade, mas longe das câmeras e de celulares. Prefiro episódio tétrico de qualquer um dos programas da série CSI.

Democracia pega e quando cisma é como fogo quando quer arder, água correr e mulher… isso aí. Atenção para o sul de nosso pacífico país, na milongueira Argentina, sempre a nos atormentar, já que elegeram antes que nós uma mulher presidente (e até mesmo presidenta), a vistosa Cristina Kirchner, cuja reeleição já estava garantida.

A Otan observa. Subam mapa acima e reparem na Venezuela, com o presidente Chávez, meio malucão, mas só que sem tortura feito Gaddafi, de cabelo rapado e se afirmando com câncer, lançou de forma solerte sua candidatura à permanência no posto nas eleições de 2012.

O médico que disse que ele não tinha mais que 2 anos de vida, por um motivo qualquer –talvez haja uma guapa venezuelana na história– deixou o país e dele nada mais sabemos. Onde estão vossos celulares, venezuelanos? Em louvável iniciativa pacífica, a Otan ainda não ameaçou bombardear o a Venezuela.

Também a Tunísia não consta dos festejos explosivos da Otan, uma vez que os tunisianos foram às urnas eleger uma Assembleia Constituinte, fato inédito para eles. Tanto islâmicos quanto secularistas, facções em que se encontram divididos, pensam tratar-se de uma festa prolongada comemorando o fato de serem o primeiro país a florescer na colorida aventura da Primavera Árabe.

Por aqui, sem necessidade de recorrer à Otan, os ciganos irlandeses, ou viajantes, como preferem ser chamados, abandonaram finalmente as terras ilegalmente por eles ocupadas há décadas.

No entanto, jovens meio bobocas há uma semana ocuparam a entrada para a catedral de Saint Paul, obrigando-a a fechar suas vastas portas seculares, fato que só a blitz conseguiu em 1940 e que custa à manutenção do marco 16 a 20 mil libras por dia.

A garotada diz que a ocupação pacífica é uma manifestação “anti-capitalista”. E mais não têm a dizer. Anti-capitalista. Ponto. A Otan acompanha a falta de higiene reinante. Sua contrapartida norte-americana acampada em Wall Street empunha cartazes e porta-vozes bem mais articulados. A Otan estuda o caso afim de chegar à melhor opção para remediar as duas perigosas situações.

Liderada por americanos, franceses e ingleses, a Otan mandou um presentinho com um belo cartão parabenizando a bela primeira-dama francesa, Carla Bruni-Sarkozy, por ter dado à luz uma saudável menina a que o primeiro-casal deu o nome de Giulia, hostilizando assim um país inteiro que preferia Julie.

Na França, começam os primeiros protestos organizados. A Otan observa com vivo interesse.

*Colunista da BBC Brasil

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Uma ideia sobre “Otan e o mundo

  1. Piá da Favela

    Finalmente, topei com um artigo do professor Cláudio Lembo, ex-vice-governador de São Paulo, cuja filiação ao DEM o deixa insuspeito de qualquer conotação esquerdista ou anti-ocidental. Reproduzo, porque é escrito não apenas com as lições da História, mas com a alma de um ser humano que, à parte de ideologias, não tem prazer em ver a profanação de cadáveres. E que, lucidamente, não a atribui aos árabes, mas aquilo a que os levamos – das Cruzadas até hoje – em nome dos interesses econômicos e políticos que usam a democracia como o cristianismo foi usado, há muitos séculos, como bandeira de sua hipocrisia.
    Leiam o texto. É muito bom, em meio a isso, ler as palavras de um ser humano civilizado.
    “Morreu Kadafi. Os meios de comunicação ocidentais comemoram. Algumas personalidades internacionais demonstram satisfação. Todos proclamam a importância do fim de mais uma ditadura.
    Restam, no entanto, perguntas não respondidas. A História da Líbia é de conflitos permanentes. Desde a antiguidade, a área geográfica, onde se situa o país, foi invadida por inúmeros povos: fenícios, gregos, romanos, vândalos e bizantinos.
    Em tempos mais recentes, italianos, alemães, ingleses e franceses estiveram ocupando os desertos que se estendem, a partir do Mediterrâneo, no norte da África.
    Beberes e árabes formam a população líbia que, a partir do governo de Mohamede ben Ali – em 1840 – adotou o islamismo como religião, a partir de uma seita que se tornou altamente popular.
    Aqui a primeira pergunta sem resposta. A queda violenta de um governante, ainda que ditador, não gerará um clima de humilhação e revolta em grande parcela da população?
    Esta é muçulmana. Durante os últimos séculos, foram vítimas do colonialismo e do imperialismo que, sem escrúpulos, utilizou as riquezas naturais dos povos dominados.
    Até há pouco, os governantes europeus cortejavam Kadafi e o utilizavam para negócios exuberantes. De repente, o dirigente morto caiu em desgraça.
    Para derrubá-lo, somaram-se as maiores e mais poderosas forças armadas. Estados Unidos aliados à OTAN – Organização do Tratado do Atlântico – bombardearam sem piedade populações civis.
    Quando se realizam operações militares contra alvos indiscriminados restam traços de rancor e desamor nas coletividades agredidas. Até hoje, apesar das aparências em contrário, as populações das cidades alemãs bombardeadas na última Grande Guerra – particularmente Dresden, Frankfurt e Berlim – guardam a dor pela perda de seus antepassados.
    O Ocidente, em sua ânsia de dominação, vai semeando ódio e desencanto por toda a parte onde se encontram presentes os muçulmanos. Ontem, foi o Iraque e o Afeganistão. Hoje, a Líbia.
    Esta macabra escalada precisa conhecer paradeiro. Ser finalizada. Irá tornar a falsa primavera árabe em rigoroso inverno, nas relações entre os povos.
    Os dias de hoje recordam o dramático e brutal episódio das cruzadas. Agrediram populações que as receberam calorosamente. Saquearam. Mataram. Violentaram. Em nome de valores religiosos, praticaram atrocidades inomináveis.
    Repetir a História é tolo. O Ocidente sempre a repete se fundamentado em princípios intrinsecamente valiosos. Fala em democracia. Omite que esta, para ser implantada, exige condicionantes culturais e sociais.
    Na verdade, o que se constata é o interesse econômico nas áreas integrantes da chamada falsamente Primavera Árabe. Está se gerando, na verdade, uma grande reação dos povos que adotam o Islam como religião.
    O futuro demonstrará que, apesar das intervenções econômicas que virão, um substrato de animosidade restará presente. Quem é agredido, mais cedo ou mais tarde revida.
    É lamentável que os países europeus e os Estados Unidos conheçam apenas as armas como diplomacia. Seria oportuno adotarem o diálogo como forma de resolver conflitos.
    Chegou-se ao Século XXI com os mesmos vícios da antiguidade. Não se busca a paz. Deseja-se a guerra. Violam-se princípios. Aplaude-se a morte de pessoas indefesas.
    Não é assim que se educa para a democracia. O devido processo legal e o direito de defesa são sustentáculo de valores perenes. O espetáculo selvagem visto nos últimos dias empobrece a humanidade. Envergonha seus autores.
    A Primavera Árabe transformou-se no inverno dos mais elevados valores concebidos no decorrer do tempo. Continuam selvagens, como sempre.”

    Blog Tijolaço

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