17:58Jornal da guerra contra os taedos

de Manoel Carlos Karam

A chegada ao Front, como se fosse Paris, New York, Roma, Marte, me mostrou cenas que eu poderia resumir num título: Só pastiche no front. Claro, havia ranger de dentes, ninguém era louco de desobedecer ao mandamento. Havia choro, claro, ninguém era de ferro. Recebi munição, fuzil, maconha, cocaína, aspirina e comida, fui para a trincheira. Era a minha chance de encontrar aqueles 8 rostos escondidos na trincheira no quadro Jornal da guerra contra os taedos. Resumindo tudo: que merda! A trincheira era absolutamente fiel ao quadro: havia 8 canos de fuzil e mais nada naquela trincheira feita de lama. Não havia 8 gatilhos nem 8 culatras nem 8 soldados, apenas 8 canos enterrados na lama para que parecessem uma patriótica ereção. Só pastiche no front. Entrei na trincheira com medo de alguma coisa óbvia como sair dali pelo quadro e deixar pegadas de lama no museu. Por nossa senhora meio parecida, isto nunca! Fiquei tranqüilo porque o meu fuzil tinha mais que cano: o meu fuzil tinha gatilho, coronha, mira, munição, culatra e soldado. Gritei algo do gênero venham seus taedos filhos da puta e sentei na lama para comer um sanduíche. Depois deitei na lama apoiando a cabeça numa pedra e dei um cochilo. Acordei com uma bomba explodindo perto da trincheira, me ergui cuidadosamente para ver o que estava acontecendo e até achei que deveria ter ouvido o ronco do avião antes de ser acordado pela bomba, o ronco do avião era do tamanho do meu despertador. Então foi tudo puro reflexo cinematográfico: ergui o fuzil e atirei. Porra, nunca alguém vai acreditar em mim. Sei lá onde foi, em que parte do avião a bala do meu fuzil acertou, mas o filho da puta começou a largar fumaça, foi perdendo altura até explodir no chão. Por nossa senhora meio parecida! porra! eu derrubei o filho da puta do avião! No primeiro instante a sensação foi de euforia, pulei dando um soco no ar. Depois veio o medo: ninguém derruba um avião assim sem mais nem menos. Guerra é guerra, eu sabia, mas mesmo sabendo eu fiquei com medo. Chegou a me ocorrer a idéia de fugir: fugir pelo quadro e escapar pelo museu. Uma péssima idéia porque seria fácil para os taedos seguir as minhas pegadas de lama no museu. Isto considerando que o avião fosse taedo. Caralho, que idéia filha da puta que me deu naquele momento: e se o avião não fosse dos taedos?, se o avião fosse nosso? Meditei durante alguns minutos e decidi ir atrás dos destroços do avião. Se fosse nosso, eu desconversaria sobre o tiro e daria socorro aos sobreviventes, se fosse avião dos taedos eu me limitaria a terminar o serviço com alguns tiros nos sobreviventes. Sem contar, é claro, que eu poderia saquear o avião se tivesse sobrado alguma coisa, eu havia me transformado num perfeito filho da puta, o general se orgulharia de mim me chamando de perfeito soldado. Mas mudei de idéia, era a hora do lanche e comi mais um sanduíche e me deitei de novo na lama e apoiei a cabeça na pedra e dei outro cochilo gostoso. Fui acordado pelo carteiro, era uma carta daquela moça bonitinha que o governo nomeou minha noiva. Se andei contando do meu horror pelo óbvio, adivinhem só o que dizia a carta: a minha noiva estava grávida. Deve ter sido o adeus que trocamos na estação, ela na plataforma e eu no trem. Para um homem que derrubou um avião como eu havia acabado de fazer, engravidar a noiva com um aceno à distância era fácil. Engravidar sem gozar, como diria o padre Eustáquio, sem orgasmo é mais santo. Passei algumas horas na trincheira fazendo planos para o bebê. Se fosse menina, seria virgem para sempre. No caso de menino, faria carreira militar, para a satisfação do general Eustáquio. Comi mais um sanduíche e dei outra cochilada. Aliás, não sei se foi longa ou curta. Mas sonhei. Sonhei que havia sido convocado para a guerra contra os taedos e que ao chegar à trincheira fui abatendo aviões a tiros de fuzil. Acordei porque fiz xixi na cama. A descrição da minha urina se misturando à lama da trincheira daria um parágrafo forte, admito, mas os meus reflexos estavam mais cinematográficos do que literários. E vocês sabem qual era a conseqüência de mijar nas calças numa trincheira? Voltar para casa. Antes que o soldado cagasse nas calças e desmoralizasse o exército e, por que não dizer?, desmoralizasse a própria guerra. Voltei para casa, ou não, me deram a passagem de trem para a cidade errada. Foi ótimo, não encontrei a minha noiva grávida.

Compartilhe

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.