16:58O trânsito, a educação e a incompetência

por André Folloni*

Somos mal-educados e incompetentes, e o nosso trânsito é prova dessa afirmação. Se estamos a pé, corremos o risco permanente de sermos atropelados atravessando a rua, mesmo tendo a preferência, ou na calçada, porque o meio-fio não é capaz de segurar um automóvel desgovernado. 

Se estamos no carro, não conseguimos mudar de uma pista para a outra, porque o motorista ao lado se sente ofendido com nossa intenção de entrar na sua frente. Em situações nas quais qualquer cidadão minimamente educado pisaria no freio, nós buzinamos. Buzinamos para xingar, reclamar, desabafar, dar bronca nos outros motoristas… Mas não saímos pela rua gritando com os outros se notamos que fizeram algo errado. Afinal, seria coisa de gente mal educada, onde já se viu fazer escândalo por aí?  

No trânsito somos, além de intolerantes, donos da verdade. Se alguém erra na nossa frente, merece a buzina. Claro que a buzina não incomoda só aquele miserável que me impediu a passagem: Incomoda também o comerciante que está ao lado; o pedestre da calçada de trás, que quase morre do coração achando que está para ser atropelado; o estudante no quinto andar do prédio vizinho, que não consegue se concentrar e; o empregado no décimo andar do prédio da frente, que não pode trabalhar em paz porque a buzina não permite. Hospitais então? Azar de quem está internado. 

Para nós, tudo isso é secundário – naqueles raros casos que lembramos que existem terceiros. O importante é gritar com quem não conhecemos, no meio da rua, para todo mundo ver. O grito do ser humano é uma falta de educação. É feio gritar com os outros, aprendemos quando crianças. No carro, contudo, a educação não vale. O grito do carro é a buzina e ela está autorizada. Buzinar é infração de trânsito, mas a nossa infração não existe, só a do outro. O outro não é alguém digno de respeito, é um obstáculo a ser removido. A rua é nossa, não nos incomodem.

Tratamos o espaço público como se fosse privado. Falta educação para compreender, como se sabe desde a tradição grega, que aquilo que podemos fazer no ambiente privado não podemos repetir no ambiente público. Se eu quiser gritar no meu quarto fechado, sem problemas. Se somos mal educados e, por isso, não conseguimos viver civilizadamente, somos incompetentes enquanto cidadãos. Não temos a competência cidadã necessária para não enganarmos, não roubarmos no troco, não fazermos gato na rede elétrica, não comprarmos aparelho de TV a cabo pirata, não roubarmos a vaga do deficiente… Enfim, para não aceitarmos que a nossa bênção é a desgraça alheia, naquele “se dar bem em cima do outro” que é tão próprio de todos nós. 

E, de repente, o Tribunal de Justiça (TJ) do Paraná decide que a URBS não pode fiscalizar o trânsito. De uma hora para outra, não temos mais quem controle o trânsito que já é, por natureza, descontrolado. Começa-se a divulgar estatísticas de como o trânsito em Curitiba piorou nos últimos dias e como o nível de infrações está subindo. O discurso coloca a culpa, pelo caos do trânsito, no Tribunal. Se pelo menos os desembargadores tivessem avisado, dado um período para que o Município se adequasse, quem sabe a URBS não poderia continuar multando por mais alguns  meses?  Não, não poderia. 

 A decisão é correta e não é surpresa. Há anos não havia exemplo melhor de ferimento à moralidade administrativa, nos bancos das faculdades de direito da capital, do que a aplicação de multas de trânsito por uma empresa com participação de capital privado, ainda que mínima. Difícil achar exemplo mais fácil de uma inconstitucionalidade tão evidente. Provocado, o TJ não teve saída. Conseguiu o milagre de tentar não provocar a anulação das penalidades já aplicadas – o que, certamente, será contestado. Nossa incompetência, enquanto cidadãos no trânsito, também se manifesta na nossa incompetência para organizar nosso aparato administrativo de fiscalização do trânsito. Nosso modelo foi anulado porque foi construído de forma incompetente. E agora não temos agentes competentes para nos punir por nossa incompetência. Somos incompetentes até para isso: Para fiscalizarmos nossa própria incompetência!

*André Folloni é doutor em Direito, professor da PUCPR e advogado do escritório Marins Bertoldi Advogados Associados de Curitiba

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