21:22Octávio Ribeiro encontra João Antonio para falar de Clarice Lispector

“ELA ERA UMA DISCORDÂNCIA TOTAL”*

Octávio Ribeiro encontrou João Antônio no Rio. Aquele, autor de “Barra Pesada” – seu primeiro livro, até agora – e este, autor de “Leão de Chácara”, “Malagueta, Perus e Bacanaço”. “Lambões de Caçarola”, “Casa de Loucos”, “Malhação de Judas Carioca” e “Calvário Torres de Pingente Afonso Lima Almeida Barreto”. O assunto dos dois: Clarice Lispector, recentemente falecida, e o drama do escritor num país de analfabetos.
 
Octávio – Há quanto tempo você conhecia Clarice Lispector, heim, João Antônio? 

João Antônio – Olha, eu conhecia a Clarice Lispector desde 1963 quando ela lançou, incrivelmente só, naquela época, a segunda edição de “Perto do Coração Selvagem”, em São Paulo, na Livraria Francisco Alves, rua Líbero Badaró, numa noite. Nessa época era uma mulher de uma beleza inquietante, uma beleza muito pessoal, muito marcada, singular, uma beleza quase selvagem. Ela tinha uma beleza loura e ao mesmo tempo meio tomada de certa tropicalidade. E, ao lado disso, uma escritora que tinha essa mesma personalidade escrevendo. Quer dizer, talvez tenha sido uma das grandes escritoras brasileiras e quem sabe do mundo todo, principalmente hoje, por ser uma das mulheres de escritura mais feminina.
 
Octávio – Na sua opinião qual foi o melhor livro dela?

João Antônio – Bom, o grande livro da Clarice, a meu ver, é o “Laço de Família”, uma coletânea de contos… Porque se a Clarice foi uma artista fazendo romance, ela era muito mais artista fazendo conto. Veja bem, o conto pra ela cabe como uma luva, devido a uma coisa que ela tem, impressionante, que é ai um conceito meu, sei lá, é que o conto exige uma forte personalidade e um poder de captação muito grande de um clima específico de um clima determinado e isso acho que Clarice pega como ninguém. Clarice sabe, por exemplo, transformar uma galinha, uma simples galinha de domingo, num personagem cósmico, quer dizer, num personagem de dimensões inquietantes, como é propriamente o conto “Uma Galinha”, que foi um dos primeiros trabalhos que eu li dela, juntamente o “Crime do Professor de Matemática”, na antiga revista “Senhor”. A revista que, praticamente, revelou a Clarice para o grande público, porque era uma escritora que estreou com 19 anos. E é bom que se diga que a primeira editora à qual ela se apresentou, a José Olympio, não quis editar o seu livro, mas foi a editora que disputou o último livro dela, que é a “Hora da Estrela”. A obra da mulher era tão forte, era tão independente, que ninguém queria se arriscar. Porque editor é assim no Brasil, né? Editor só quer jogar na certa. Ele só quer jogar no Jorge Amado da vida, enfim nos nomes que estão aí na onda.
 
Octávio – Além do Jorge Amado, quais?

João Antonio – Érico Veríssimo, atualmente, mais essa turma mais conhecida, um Wander Piroli, entende? Um Márcio Sousa, que são esses cartas que estão vendendo aí, um Carlos Eduardo Novais, são homens que têm editoras sem nenhum problema, entende? Mas, na verdade, os editores só querem jogar é realmente em jogadas certas, eles não querem investir em autor nenhum, está entendendo? E quando investem, investem mal, essa é que é a verdade.
 
Octávio – Exemplo.

João Antônio – Olha, Sérgio Santana, Raduan Nassar. Mas tem um bando de autores aí, da maior importância. Manuel Lobato, por exemplo, Osvaldo França Júnior, que se fossem lançados condizentemente com a obra deles, pô, esses caras estariam vendendo tremendamente. Um próprio exemplo, o Aguinaldo Silva. E não pega por falta de editoração conveniente, de divulgação, de boa distribuição, de uma política de preços compatível com o livro, enfim, de uma atitude profissional do editor diante do trabalho escrito. Os editores não percebem que a coisa mudou, que o tempo é outro, que é preciso entrar pela televisão, que é preciso se agilizar, que é preciso colocar propaganda até no meio da estrada, que é preciso popularizar o livro. Eles estão falando tanto em democratização, redemocratização, vamos começar pela cultura? Olha uma boa sugestão aí. Começar essa tal dessa abertura e redemocratização pela cultura, está entendendo? Porque você vê o seguinte, que hoje os nossos estudantes de letras e comunicação não estão estudando os autores nacionais como deveriam, desconhecem quem são esses autores, e param em José de Alencar e Machado de Assis, essa é que é a verdade. Então, esse grande mercado que poderia ser o público estudantil, principalmente universitário, fica abandonado, fica deixado pra lá. Se você chegar numa escola de letras, hoje, e perguntar quem é o Rubem Fonseca, os caras vão pensar que é algum jogador de futebol. A coisa está escandalosa mesmo. E outra coisa, esse ensino de literatura tem que levar uma modificação porque, realmente está um ensino que não tem nada que ver com a nossa realidade. Ele não tem nada que ver. Ele está se baseando em modelos estrangeiros. Quer dizer, tudo isso é uma política contra o autor nacional. Isso representa, no fundo, um pacote, uma bateria de coisas contra o autor nacional.

Octávio – Agora, voltando à Clarice Lispector, conta um pouco as caminhadas dela pelas editoras.

João Antônio – Bom, Clarice, coitada, ela sempre foi, devido à própria natureza dela, uma criatura muito tímida, e isso inclusive dava uma aparente visão de que ela fosse uma pessoa muito altaneira, muito orgulhosa, e tal. Mas era muito tímida. Clarice era uma mulher que tinha dificuldades de expressão verbal, quer dizer, ela tinha dificuldades de pronúncia de certas palavras, por exemplo, tinha o problema da língua presa, que ela nunca quis operar, porque o médico disse que doía muito. Veja bem, que médico foi esse.
 
Octávio – Ela falava como?

João Antônio – Ela tinha uma dificuldade geral de expressão, ela tinha um “R”, o “R” dela saia todo torto, saia todo pegando e tal e coisa, além disso era muito tímida. Então, ela foi devidamente usada por esses editores, está entendendo? Ela chegou até a ver livros editados em segunda edição sem que se dissesse nada pra ela, está entendendo?
 
Octávio – Mas quais os livros?

João Antônio – Por exemplo, a “Imitação da Rosa”. Quando saiu a segunda edição, ela foi encontrar já no mercado e aí é que ela foi telefonar pro editor. Até ficou muito danada, porque ela queria modificar alguns contos e também estava pensando até noutro título para o livro. Além do que, um conto da Clarice que foi pra antologia chamada “Literatura Brasileira em Curso”, que hoje está em sétima edição e é de Bloch Editores, até hoje Clarice não recebeu um tostão por aquilo. Fora os editores que arrumavam negócios para ela publicar noutros países e enquanto ela ia, ganhar duzentos dólares, eles iam ganhar 250 dólares, entende? Foi o caso de uma edição que arrumaram pra ela com a Bertran, em Portugal. E não somente isso, por exemplo, há o farisaísmo generalizando em torno de Clarice, a verdade é essa. Clarice chegou a ser demitida de jornal e depois tida e havida assim como uma pessoa incompetente, uma pessoa que não sabia escrever, está entendendo? Então saiu com uma mão na frente e outra atrás, sem indenização, sem coisa nenhuma. Bom esses mesmos jornais, no dia de sua morte, expuseram em página toda, o verdadeiro “marketing” da morte de Clarice, quer dizer, porque depois de morta dona Clarice iria vender jornal. Tem outro negócio aí, estão preparando um ‘boom” literário brasileiro, que vai ser um movimento postiço, feito da Europa pra cá, ou de Nova York pra cá. Ou vem via Paris, ou vem via Barcelona, ou vem via Nova York, essa é a verdade. Então Clarice, que durante a vida foi esquecida, e tal, vivia aí no Leme, na Gustavo Sampaio, aí, abandonada, de repente ela está sujeita a se transformar numa bandeira desse “boom” literário, devido à natureza da literatura dela que é muito universal e, consequentemente, muito traduzível. Explorada em vida e mais explorada depois de morta.
 
Octávio – Ah, mas isso é cotidiano.

João Antônio – Isso é cotidiano, quer dizer: “morre Clarice Lispector, a vergonha continua”. E os nossos lindíssimos escritores aceitam o farisaísmo. Você abre os jornais e está todo o mundo dando depoimento, dizendo que Clarice era maravilhosa, que todo mundo era amigo de Clarice – isso é conversa, porque ninguém ia visitá-la, eu sei disso, e Clarice, inclusive, reclamava isso e dizia “eu não sei por que as pessoas não se aproximam de mim, eu não sei por que vocês me transformaram num mito, num monstro sagrado, eu sou apenas uma pessoa humana, entende?” e, no entanto, está todo o mundo dizendo que era amiguinho de Clarice Lispector, com que direito? Quem é que realmente era amigo dela, quando ela era viva?

Octávio – Mas quem é que disse que era amigo dela?

João Antônio – Abra-se o Jornal do Brasil e veja-se os melhores nomes da literatura brasileira, né?

Octávio – Cite alguns.

João Antônio – Por uma questão ética eu não vou declinar nomes aqui, que eu não sou bobo nem nada, está entendendo? Porque eles têm o poder literário nas mãos.

Octávio – Está bom, está bom, doutor o senhor se agarrou na ética…

João Antônio – Não, eu não estou me agarrando na ética, eu estou dizendo o seguinte: que a dona Clarice Lispector foi lesada em vida e vai ser lesada depois de morta, está entendendo?

Octávio – Então me diz os nomes.

João Antônio – Álvaro Pacheco…

Octávio – Isso…

João Antônio – Adolfo Bloch, que deve ter ido até ao enterro dela, porque são bons fariseus e estão fazendo um farisaísmo bíblico com ela, está entendendo? Os homens que encomendavam traduções a ela, porque ela cansou de fazer tradução mal paga como todo mundo, traduções de livros que hoje estão em 15° edição, etc., etc., etc., e ela só recebeu uma vez. Veja bem, mas eu não quero agora transformar aqui a figura de Clarice Lispector, por eu achar que é uma grande escritora, em mártir da inteligência brasileira, não é nada disso. Quero pegar isso e ver se gente levanta aqui o seguinte: a injustiça que é cometida com o autor. Quer dizer, o autor que é o cara badalado, que é o cara festejado e tal e coisa, mas que na hora da grana não ve é nada. É uma vergonha. A TV-Educativa (Rio), o Museu de Imagem e do Som, são duas vergonheiras danadas, que não tinham nenhum depoimento completo de dona Clarice Lispector. Essa é que é verdade. O dia que morreu a Clarice aí, os caras nem tinham mais um retrato da Clarice dentro da TV-E, ficaram apresentando sempre o mesmo retrato. Nunca fizeram com ela uma boa entrevista. O Museu da Imagem e do Som não tem elemento nenhum sobre a Clarice. A mulher morre aí com 54 anos e tal e está nessa briga desde 19 anos de idade, está entendendo? Quer dizer, os caras não têm um depoimento, que País é esse que não pesquisa os seus melhores? Então, veja bem, o Museu da Imagem e do Som não tem um depoimento feito com essa mulher, mas aonde é que estão esses homens que dizem que cuidam da memória nacional? E essa TV-E o que é que está fazendo? A TV-E é capaz de morrer o Carlos Drumond de Andrade, amanhã, Deus o livre e guarde – três pancadas na madeira – porque é o último grande patrimônio literário brasileiro, e não tem uma gravação no Museu da Imagem e do Som, não tem uma gravação na TV-E…

Octávio – Mas aí no caso de Drumond, vamos lá, aí ele não gosta de dar entrevista. É difícil.

João Antônio – Ele não gosta de dar entrevista pelo seguinte: mandam um profissional entrevistá-lo que não tem gabarito, que não se interessa pela coisa, então o Drumond fica arredio, porque o Drumond é mineiro, é itabirano, é um homem cuja formação é tímida. É um sujeito que trabalha no silêncio, está entendendo? Quer dizer, a natureza dele é essa e tem que respeitar a natureza dele, todo o mundo tem o direito de ser louco. Músico popular tem direito de ser louco. Cineasta tem o direito de ser louco, de ser mau caráter, de ser caloteiro, está entendendo? Pintor tem direito de ser louco e gostar muito de dinheiro. Agora, escritor não tem direito a nada? Escritor tem direito a ser genial fazendo a obra e ser direitinho na vida, entende? Se o cara bebe muito é alcoólatra; se o cara não sei o quê, é mulherengo; se o cara não sei o quê, é toxicômano, o escritor tem que ser botininho. O escritor não tem direito a ter temperamento. Só podem ter temperamentos os chamados artistas, está entendendo?

Octávio – Mas cineastas você colocou o negócio genérico, ou como é que é?

João Antônio – Não. Existe preconceito que julga o nosso cineasta, ah genérico não, não tem nada genérico. Eu estou cansado de ver as maiores injustiças diante dos escritores. Recentemente, por exemplo, o sr. Carlinhos de Oliveira, José Carlos de Oliveira, publicou no Jornal do Brasil uma crônica chamada “Sobre os Escritores”, em que ele diz que os escritores não participam da vida cultural brasileira, quem participa são os cineastas e os cineastas é que brigam, o escritor não briga. Ora, o sr. Carlinhos de Oliveira não sabe a luta que está havendo hoje no Sul, a luta que está havendo hoje em Minas Gerais, a luta que está havendo hoje em São Paulo, a luta que está havendo hoje no Nordeste, feita por escritores, que estão indo às escolas, que estão debatendo com estudantes, que estão fazendo público, que estão levando uma imagem e uma mensagem de cultura brasileira, que estão quebrando pedra sozinhos, no anonimato. Ninguém está sabendo, por exemplo, que em Minas tem uma equipe de escritores com Wander Peroli, Benito Barreto, Manuel Lobato, que estão indo a todo o interior de Minas, em fim-de-semana, entende? Debater com estudantes, etc., etc., eu mesmo participei de alguns. Estava esquecendo que eu viajei este País todinho de Manaus até Ijuí, a convite de estudantes e, muitas vezes, fui com o dinheiro da passagem do avião, não ganhei um tostão de cachê, nem de droga nenhuma, e a troco de quê? Quer dizer, então o sr. Carlinhos de Oliveira, que está vivendo num ilustre, e sem expressão nenhuma, país do Leblon, porque isto não é Brasil coisa nenhuma, não é nem Rio de Janeiro, que dirá Brasil, isto é uma amostra raquítica dessa cultura tupiniquim colonizada – vem dizer que escritor não faz nada, que escritor não quer nada, não briga por nada. Logo a seguir, ele faz na sua crônica um retrato sobre a lamentável situação de dona Maura Lopes Cansado, que estaria – segundo ele – presa num presídio de loucos e cega, etc. Mal sabe ele que foi feito um movimento pelos escritores e que participaram desse movimento, não apenas escritores como Aguinaldo Silva e Edilberto Coutinho, mas também jornalistas, como Irã Frejard, e que lutaram para tirar a Maura daquela situação em que ela estava, recolocar Maura numa clínica, e a Maura já foi operada da catarata. Quer dizer, então, que o escritor é o cara que leva só cacetada, está entendendo?

Octávio – Você saiu por uma estrada, mas vamos voltar pra Clarice Lispector. Certo? Eu quero a caminhada da Clarice pelas editoras?

João Antônio – A caminhada da Clarice pelas editoras é a seguinte: a Clarice, ela nunca foi mulher que tivesse quem coordenasse o trabalho dela e ela não entendeu, não sabia, que ela pra conseguir alguma retirada boa de direitos autorais, ela tinha que concentrar a obra dela numa editora só. Isso no Brasil é fundamental, o cara tem que ficar numa editora só, para ir criando um veio. Então, Clarice ficava pingando de lá pra cá. Por exemplo, “Perto do Coração Selvagem” foi um livro que ele teve vários anos esgotado, está entendendo? E procurando editar daqui, editar de lá. A segunda edição saiu pela Livraria Francisco Alves. Depois, já os outros livros ela fez pela José Olympio, um só, fez outro com Álvaro Pacheco, e ficava nessa coisa, quer dizer, nessa desorganização, porque, realmente, acontece o seguinte: o espírito de Clarice não era um espírito que somasse dois e dois são quatro, porque se ela soubesse somar não saberia fazer o texto que ela fazia, ela não seria a mulher que ela era, está entendendo? Porque dois e dois são quatro é pro burocrata do Ministério dos Transportes, ou então pro ladrãozinho, sem vergonha, pro especulador, qualquer especulador do mercado imobiliário sabe disso, o escritor não sabe, porque o escritor transa com outros valores, aí é que está o papo. Então a Clarice era bigodeada ai, enquanto esperava ser editada teve que entrar por outros caminhos, fazer tradução, ir pro Jornal do Brasil, fazer matérias pra Fatos e Fotos etc. Porque acontece o seguinte, o editor no Brasil não investe no cara. Ele não faz assim um programa de ter um borderô no qual esteja incluido o gasto, pagamento com direitos autorais. Se você pegar um borderô de produção de livro, você vai ver que todo mundo vai ganhar garantidamente, desde o revisor, até a gráfica, o capista etc., etc. Agora os 10% de autor não estão naquele borderô. Aquilo você vai ganhar se o livro vender. Ela deu uma declaração, por exemplo, lá em Porto Alegre, saiu no “Coojornal” em novembro de 1976 – dizendo: “estou em várias editoras, mas tem uma que edita seis livros meus e sabe quanto me pagaram neste semestre? Menos de mil cruzeiros. Isto, editando seis livros meus”. Agora, se você me pergunta: ah, mas o escritor devia ser um ser mais politizado, saber das coisas, e tal. Isto é uma besteira, sr. Octávio Ribeiro, porque no Brasil não existe classe, a verdade é que não existe vida sindical neste País. Ninguém tem consciência profissional de coisa nenhuma. E é disso que o empresário sempre se vale, entende? Existem alguns pequenos grupos que estão começando agora a ter uma consciência profissional porque consciência profissional não nasce à toa, ela é o resultado de vida sindical e, neste País, não tem vida sindical. Os escritores, coitados, tem aí o diabo de um Sindicato dos Escritores que nem podia levar esse nome. É um verdadeiro mumiário, quer dizer, Museu de Múmias, e esses caras agora que estão tentando retomar o Sindicato porque os atuais ocupantes e dirigentes desse sindicato, nem escritores são. Basta dizer que o presidente é o sr. Raul Floriano, dr. Raul Floriano, que pode, é um professor de Direito, autor de livros de Direito, mas não tem expressão literária nenhuma. Quer dizer, essa situação do escritor brasileiro, é uma situação geral.

Octávio – Você já levou muito calote?

João Antônio – Cinema, por exemplo, levei um trambique, né? Todo mundo sabe. Estou processando a Bloch Editores na Justiça, prá ver se eu recebo “Antologia Brasileira em Curso”. Tenho aí em casa um caderno só de calotes e que inclui grandes nomes da imprensa nacional, quer dizer, levei calote a torto e a direito. Colaborações que me pediram. Contos que publicaram e que nunca me pagaram e ficou tudo por isso mesmo, tal e coisa, e assim por diante, quer dizer, tradução, por exemplo, o único dinheiro que eu vi de tradução – e isso é muito bom pra certos caras que falam besteira aí – foi da Checoslováquia. Foi o único País que me pagou por tradução o resto não me pagou não. Eu fui traduzido na Espanha, fui traduzido na Argentina, fui traduzido na Venezuela, fui traduzido na Checoslováquia, na Polônia, na Alemanha Ocidental.

Octávio – Agora, quem recebeu mais tarde, você ou a Clarice.

João Antônio – Eu acho que a Clarice muito mais, porque ela tinha um temperamento tímido e dava até a impressão de um temperamento nobre, uma mulher desquitada de um embaixador e tal. Eu não. Como eu tenho alma de favela e de lavadeira, eu vou pros jornais e boto a boca no mundo. Me roubou eu chamo de ladrão.

Octávio – Então, você cansou de ir pros jornais.

João Antônio – Cansei de ir pro jornal pra falar que estou sendo roubado. Polícia, socorro, estou sendo roubado, como se faz dentro de bordel… Aliás, a diferença de escritor pra prostituta é nenhuma. Nenhuma.

Octávio – Mas escritor não tem cafetão.

João Antônio – Como não tem? Pois ele tem o editor. Ele tem o repressor que é a polícia da censura, e tem o cafetão que é o editor, entende? Apanha da Polícia na rua e no outro dia está fazendo a vida de novo pro editor ganhar dinheiro.

Octávio – Como é que você pode chamar, você acha que tem o direito de chamar o editor de cafetão?

João Antônio – Mas, absolutamente, pois ele é explorador. Se o editor fosse um cara bacaninha como ele diz, ele tinha transformado a sua editora em uma sociedade cooperativa para os seus funcionários e para os seus autores. E alguns ainda vestem aquela imagem de contestador, de esquerdinha. A esquerda é um mercado de consumo no País, entende? A contestação de botequim no País é um negócio que fatura, pô, quer dizer, é uma forma de alienação, também, nossa discussão dentro dos botequins. Dentro dos botequins estão sendo feitas revoluções, ou melhor, estão sendo conclamadas.

Octávio – E por que é que você não faz um livro com o titulo: “A Guerrilha de Boteco”. 

João Antônio – Olha eu estou fazendo um livro que não tem esse título mas pretende passar a limpo toda uma geração que foi vítima desses fatos todos, entende? E um dos títulos precários desse livro, não adianta ninguém querer roubar, porque eu tenho mais quatro estepes para esse título, tão bons quanto esse.

Octávio – Alô, alô, fábrica de criação, câmbio… 

João Antônio – O título é o seguinte: “Os Alegres Rapazes da Imprensa Carioca”. Esse é o título. É uma geração que antes de 63 pensava que ia fazer muita coisa e hoje muitos estão mortos, outros estão neurotizados, outros estão impotentes, outros são jogadores, são alcoólatras, são homens destruídos.

Octávio – A imprensa não tem nada?

João Antônio – A Imprensa? A imprensa apenas configurou, ajudou a destruição dessa gente, entende? A Imprensa apenas assistiu, entende, friamente a esses cidadãos serem destruídos, todos eles eram jornalistas. A imprensa brasileira hoje não tem função nenhuma. Qual é a função da grande imprensa brasileira? É trocar anúncios, é fazer negócios? E que imprensa é essa, representativa de que cultura, que o jornal que mais tira neste País tira 300 mil exemplares e a nossa população é 120 milhões de habitantes. Esse jornal é feito pra quem? Aí nem entra povo.

Octávio – Agora, vem cá, dizem que no Brasil não há complexo racial.

João Antônio – O quê? Ah, mas quem disse isso está muito enganado.

Octávio – Espera aí, você conhece algum escritor negro?

João Antônio – Opa, mas é claro, mas eu só vou te dizer o seguinte: isso é uma vergonha, está entendendo? Num país cuja maioria é negra, a maioria do País é negra, não tem escritor negro, como não tem grandes professores negros, como não tem grandes patentes militares negras, como não tem embaixador negro, negro realmente é uma classe que está por baixo. Há todo tipo de preconceito que é pior, porque é um preconceito velado, que não deixa o negro sequer aparecer. O negro só aparece quando é peça rara, quando é peça pitoresca, está entendendo? Pinta no futebol, pinta na música popular, pinta no terreno onde o branco ainda não é capaz de fazer tão bem quanto o negro. Mas, no entanto ele domina, ele domina as coisas todas. Por exemplo, o futebol brasileiro, você não me apresenta um cartola, quer dizer, um presidente de clube que seja negro. No entanto, o negro é que faz o futebol, pô. São os Pelés da vida que fazem o futebol. Guarrincha, mulato, que faz o futebol, está entendendo? quer dizer, são os negros que têm feito o futebol e sempre. Mas, no entanto, eles nunca chegaram ao poder de decisão. Quer dizer, a cúpula, o poder de decisão, está todo na mão de brancos. A mesma coisa acontece na música popular.

Octávio – Um negro pra entrar num hotel de luxo teve que dizer que é filho do Pelé, né? (risos).

João Antônio – Teve que dizer. Exatamente, então veja bem, o que existe, eu não quero agora ser racista, ao contrário, começar dizer que o negro só que é o coitadinho. Não é o negro. É o pobre. É o cara que está trabalhando no campo. É o sujeito que não tem grana. É o sujeito que não tem grana e que não chega ao poder de nada, que não pode estudar, porque o ensino aqui é pago.

Octávio – E se ele escrever um livro e for oferecer às editoras, se o livro for bom, como é que fica?

João Antônio – O exemplo disso foi a exploração que se fez da Carolina Maria de Jesus, uma favelada negra, que publicou “Quarto de Despejo” com certo sucesso. Mas, que depois foi completamente abandonada, quer dizer, não se deu sustentação a essa mulher, está entendendo? ela foi tirada da sua condição de favelada, foi jogada como uma peça rara, como uma peça pitoresca, está entendendo? A um aparente estrelado e depois ela foi abandonada, não lhe deram sustentação. Então, não adianta nada. Revelar um elemento do povo, se apropriar de um elemento do povo pra depois abandonar e deixá-lo por aí, então não adianta nada.

Octávio – Eu acho que isso não é privilégio dos negros… 

João Antônio – É que todo indivíduo – todo e qualquer indivíduo em qualquer nível neste País, seja ele branco, preto, amarelo, que for trabalhador, está perdido, porque aqui o que menos se valoriza é a força do trabalho. Aqui só ganham dinheiro com trabalho os intermediários, os exploradores, os especuladores, porque é do próprio sistema esse jogo.

Octávio – E, eu acho que eles vão achar isso altamente subversivo, não? 

João Antônio – Não quero saber de subversão. Fique sabendo o seguinte, qualquer escritor é por definição um subversivo. Qualquer arte propõe uma nova ordem, então, ela é subversiva. E qualquer sociedade que não aceitar é uma sociedade cocoroca, porque uma sociedade tem que ser dinâmica, ela tem que ser transformada. Ela não pode ser um negócio estático. Todo e qualquer artista é nitidamente um subversivo porque ele propõe uma nova ordem. Essa é que é a realidade, está entendendo? Essa palavra subversão no Brasil está sendo usada sem a menor propriedade. Os idiotas que escrevem e que dizem isso não sabem o que estão falando, entende? Porque a subversão é uma necessidade, é uma necessidade. Não existe sociedade estática, entende? Toda sociedade estática leva à decadência. Exemplo, é o fascismo do Hitler, o fascismo do Mussolini, quer dizer, acharam que já tinham descoberto a realidade, a verdade definitiva das coisas, está entendendo?

Octávio – A Clarice merecia Academia, como é que é? Antes da Rachel.

João Antônio – Ah, mas espera aí, antes da Rachel, não sei se antes ou depois da Rachel, mas do ponto de vista de uma qualidade do seu trabalho e de uma folha de serviços prestados à literatura brasileira… entende porque o que eu penso da Academia é que é ridículo pertencer à Academia, isso é o que eu penso.

Octávio – Então a Clarice não quis porque era ridículo ou por que ela nunca se candidatou.

João Antônio – Não, não é por isso não, porque não quis se candidatar, não tinha paciência pra isso. Agora, é preciso que eu diga o seguinte: eu acho muito bom que a Rachel de Queiroz esteja na Academia Brasileira de Letras. Já foi uma abertura de mentalidade. Embora eu ache que a Academia, devido às posições que ela tem tomado, muito estáticas, muito conservadoras, ela é um lugar que não fica bem pra um escritor de verdade, né?

Octávio – Por que?

João Antônio – Não, não é por isso não, porque não quis se candidatar, não tinha paciência pra isso. Agora, é preciso que eu diga o seguinte: eu acho muito bom que a Rachel de Queiroz esteja na Academia Brasileira de Letras. Já foi uma abertura de mentalidade. Embora eu ache que a Academia, devido às posições que ela tem tomado, muito estáticas, muito conservadoras, ela é um lugar que não fica bem pra um escritor de verdade, né?

Octávio – A Clarice discordava muito né?

João Antônio – Ah, discordava profundamente. Aliás a literatura dela é uma discordância total, porque é uma literatura feita sobre a inquietação humana, sobre as grandes contradições humanas, as contradições da paixão, as contradições do amor ou do desamor, da solidão do desespero, entende? Principalmente da ausência de amor. E há quem diga que a Clarice fez uma obra alienada, ou não engajada. Isso é uma besteira muito grande. Essa última personagem dela da “Hora da Estrela” é uma personagem de uma mulher pobre, que vive na rua do Acre, aqui no Rio de Janeiro, consequentemente tem que ser um retrato social. E, também, veja bem, não se pode estabelecer um padrão estético, único, para a literatura. Dentro da literatura cabe todo o espaço cultural, desde uma literatura para jornalística, uma literatura de denúncia, social, etc., até uma literatura sobre os problemas da alma, sobre os abismos da angústia humana, etc e tal, cabe tudo. Dentro de uma literatura brasileira cabe desde o Plínio Marcos até a Nélida Piñon, vamos dizer, cabe tudo. O sujeito tem o direito de tocar o instrumento como ele achar que deve ser tocado, entende? Tem o artista da música de câmera e tem o artista do pandeiro.

*Publicado na Folha de São Paulo no dia 22 de janeiro de 1978

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Uma ideia sobre “Octávio Ribeiro encontra João Antonio para falar de Clarice Lispector

  1. Ivan Schmidt

    Clarice chegou a ter alguns de seus livros traduzidos, sem jamais tar recebido um centavo em direitos autorais. Quem conta é o autor da recente biografia publicada por Cosac Naify
    (Benjamin Moser). Editor, no Brasil, é um caso sério. Clarice tem sido bem reeditada, mas alguns excelentes escritores de seu tempo (Lúcio Cardoso, Octavio de Faria, Osman Lins, Julieta de Godoi Ladeira, Walmir Ayala e tantos outros) continuam rigorosamente desconhecidos do grande público.

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