10:11A solidão de Dom Quixote

Ilustração: Tereza Yamashita

por Rogério Pereira*

Tive receio de abraçá-la, de envolvê-la numa forçada intimidade. Ela deixou o balcão e sorriu-me. Eu, o forasteiro a invadir-lhe o passado. Estendeu-me a mão frágil — uma colherinha de sobremesa — à espera de um aperto delicado. Apenas toquei-lhe a pele desgastada e acarinhei os dedos magros. O tempo já lhe arrancara todo o sumo das carnes, enfraquecera os ossos e limitara os movimentos. Uma fruta seca, esquelética, à espera de uma colheita inevitável. Ela retirou o avental da loja de ferragens e pediu-me para que a seguisse. Avancei pelo corredor atrás daqueles passinhos miúdos, medidos como dois ponteiros de relógio prestes à imobilidade. Ao fundo, a escada. No topo, Dom Quixote a guerrear contra a insânia alheia.

Cheguei àquela cidade fronteiriça, violenta e sem qualquer importância com uma tarefa pouco sedutora: escrever breves perfis de alguns pioneiros da região. Contar histórias de superação, dificuldades, conquistas e derrotas. Esta mulher mirrada, dilapidada pela idade, cujo corpo arqueado se arrasta diante de mim, tem a vida visceralmente ligada àquela terra. A timidez e o recato oriental acentuam a sua fala mansa, pausada e muito baixa. Eu envergo o corpo em direção aos lábios em movimento. Ouço um rio de histórias. Todas pontuadas por um orgulho sereno. Chegaram, abriram estradas, montaram galpões, trouxeram animais, plantaram soja e milho. Enfim, iniciaram um mundo onde mundo não existia. Ao chegar ao fim dos degraus, estanca o corpinho de beija-flor e encara-me com luzes coloridas a iluminar os olhos. “É aqui”, diz em tom de confissão.

A chave gira num ruído ancestral, primitivo. As engrenagens do passado se movimentam, espalham-se pelo cômodo, buscam um lugar privilegiado para nos receber. Quando a porta se abre, apenas escuridão nos aguarda. Ela apressa-se na pressa possível e escancara a única janela. A luz enche a pequena sala. Livros por todos os lados desenham uma paisagem curiosa, acolhedora. Estão perfilados à perfeição. Fileiras e mais fileiras de livros. Todos muito velhos. Edições com mais de 50 anos. O cheiro de papel esquecido percorre cada pedaço daquele canto da casa. Quase todos são em japonês. “Eram do meu marido”, conta a minha anfitriã. “Ele gostava muito de ler. São sobre coisas do Japão.” Não resisto e pergunto: “A senhora também gosta de ler?”. O não como resposta não me surpreende. Ela não preserva uma biblioteca, mas um monumento à saudade do marido morto há muitos anos.

De várias caixas, saltam fotografias do início da cidade. Homens e mulheres desafiam a floresta. Abrem espaço para a plantação e os animais. Rudimentares equipamentos criam estradas. O progresso precisava chegar àquele pedaço do mundo. Jovem, ela sempre sorri. O marido sempre por perto. Em outras fotografias, os filhos. “Esta morreu”, conta. Uma filha e o marido já morreram. São fotos de algo que não mais existe. Imagino que em breve ela se juntará a eles nas fotografias. Onde mais?

Antes de sair, ela me leva até a estande próxima à porta. Livros em português também em perfeita harmonia nas prateleiras de madeira. Meus olhos buscam os autores. Alegro-me ao ver que boa parte são obras de Alexandre Dumas, Defoe, Dickens, Conrad, autores em cujas veias escorria a paixão pela aventura. “Ele gostava muito de ler estes também. Dizia que ajudavam a melhorar o seu português”, conta-me com palavras em câmara lenta. Então, a surpresa. “Você gosta de ler?”, pergunta-me. Ao receber um tímido sim, pede-me que a ajude com uma caixa depositada no canto da sala. Entre recortes de jornais, fotos e alguns livros, ela recolhe uma edição de Dom Quixote. “É um presente para você.” Antes mesmo de agradecer, o livro repousa em minhas mãos. É uma das milhares de adaptações de Dom Quixote para jovens que correm o mundo. Feita a partir de uma edição italiana, traz ilustrações mal impressas de Benvenuti. O papel cuchê e a capa dura emprestam-lhe alguma dignidade e a possibilidade de uma vida longa. Não há qualquer indicação do ano da edição. A Editora Formar alardeia o slogan “Dinamismo a serviço da cultura”.

Há algum tempo este livro me faz companhia. Está na minha biblioteca que ainda não tem nenhum livro em japonês. Guardo-o para meu filho. Será sua herança. Por ora, cada vez que o deparo e folheio, sinto a solidão daquela mulher nas minhas mãos. A mesma solidão a que, invariavelmente, todos estamos condenados.

*Publicado no site Vida Breve http://vidabreve.com

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