12:50Tostão e Pelé

por Tostão, na Folha de São Paulo

O maior
Pelé não tinha defeitos. Edson tem, como todo cidadão. Com exceções, os ídolos são especiais por seus talentos

Conheci Pelé nos treinos para a Copa do Mundo de 1966.
Eu tinha 19 anos. Era minha primeira convocação. A seleção brasileira fez um jogo-treino contra o Cruzeiro, em Caxambu, no interior de Minas, e meu pai foi me ver e assistir ao treino. Ele era louco para conhecer Pelé pessoalmente. Ao vê-lo, pediu um autógrafo, recebeu um abraço carinhoso de Pelé e chorou. Não é todo dia que um homem simples chega perto de um rei.

Pelé foi o maior jogador do mundo de todos os tempos porque tinha, no mais alto nível, todas as virtudes que um craque de sua posição precisa ter.
Hoje, por ser um analista, procuro um defeito técnico em Pelé e não encontro. Pelé era muito habilidoso, técnico, criativo, forte, veloz, autoconfiante, ambicioso e aguerrido. Quanto mais difícil a partida, mais ele pedia a bola e se agigantava.
Além de tudo isso, Pelé, literalmente, enxergava mais do que os outros. A estrutura anatômica de seu globo ocular, com um olhar saliente e expressivo, aumentava seu campo visual.

Pelé parecia enxergar até o que estava às suas costas.
Antes de a bola chegar a seus pés, Pelé me olhava, parecendo dizer o que ia fazer. E fazia. Tentava acompanhá–lo. Não era fácil. A comunicação analógica, por meio de gestos, de olhares e de movimentos do corpo, é menos exata, mas muito mais ampla do que a comunicação digital, com palavras.
Pelé tinha o que os especialistas chamam hoje de inteligência cinestésica. Parecia ter um megacomputador no corpo. Em fração de segundos, mapeava tudo o que estava a sua volta, observava os movimentos e calculava a velocidade da bola, dos companheiros e dos adversários. Prefiro chamar isso de saber inconsciente, que antecede ao raciocínio lógico. Ele sabia, sem saber que sabia.
As pessoas que não viram Pelé jogar ao vivo, no gramado ou na televisão, acham que seu auge foi na Copa de 1970. Seu esplendor técnico foi de 1958, com 17 anos, até mais ou menos metade da década de 1960.
Antes da Copa de 1970, muitos diziam que Pelé estava pesado e que não conseguia jogar várias partidas seguidas com a mesma exuberância. Pelé sabia disso e se preparou para se despedir da seleção com grandes atuações e com o título mundial. Foi o que aconteceu.
Pelé era um bom companheiro, no campo e na concentração. Gostava de ficar no quarto. Não tinha estrelismo nem privilégios. Tratava bem a todos. Durante o jogo, recebia orientações, broncas e não respondia com rancor.
Fora de campo, Pelé atendia a todos com um largo sorriso. Nunca o vi triste nem chateado.

Diferentemente de quase todas as grandes estrelas, em todas as atividades, em que há muitos conflitos entre a pessoa e o personagem, entre o criador e a criatura, Pelé e Edson viviam em harmonia. Pareciam a mesma pessoa. Um não incomodava o outro.
Não conheço nada da vida pessoal de Pelé, mas deduzo que ele nunca foi um empresário. Foi e é um garoto-propaganda. Além de anunciar produtos, Pelé vendeu seu nome a empresas e passou a ter vários sócios, nem sempre honestos. Uma mistura de desconhecimento com ingenuidade e também de ambição com vaidade, características do ser humano. Isso não tira suas responsabilidades.
Pelé vive viajando pelo mundo, vendendo seu sorriso, sua simpatia e sua imagem. Para isso, procura ficar bem com todos, ser politicamente correto e parecer melhor do que é. Pelé não tinha defeitos. Edson tem, como todo cidadão.
Com raras exceções, os grandes mitos, em todas as atividades, não são, nunca foram nem se deve esperar que sejam exemplos de cidadãos. Eles são especiais por seus talentos.
Pelé faz 70 anos. Aparenta ter muito menos.

Imagino que aos 90 o mundo irá vê-lo anunciando algum produto e sorrindo.
Pelé parece eterno. E é. “O que a memória amou se tornou eterno.” (Adélia Prado)

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4 ideias sobre “Tostão e Pelé

  1. K.

    Vi Pelé pessoalmente uma vez, numa coletiva no Hospital Pequeno Príncipe e algumas das coisas que Tostão diz me pareceram verossímeis. Um relato muito bem feito, com propriedade e com dois parágrafos mais ácidos e corajosos.

  2. Parreiras Rodrigues

    Tudo o que de bom se dizer a respeito de Pelé, será pouco. E o que mais impressiona é que ele é imune a paparicos. Do alto do seu trono, o sorriso da humildade, sempre!
    Sempre será aquele neguinho que saiu de Baurú para encantar o mundo.

  3. VAnderlei

    Vi o Pelé em 1970 no Belfort Duarte. Atlético x Santos pelo torneio Roberto Gomes Pedrosa, o Robertão. Era o campeonato brasileiro sem este nome.
    Pelé não fez nada de extraordinário até os 45 do segundo tempo.
    O juiz marcou escanteio pro Santos no gol que fica à esquerda de quem vê o jogo das sociais. Naquela época se falava assim: sociais. Eu não estava nas sociais, mas logo abaixo, na geral.
    Por isso pude ver o gol bem de perto. Edu pegou a bola perto da bandeirinha, lado oposto do campo pra quem estava onde eu estava. Apressado, deu uns três passos prá trás e cruzou de canhota.
    A bola veio alta fazendo uma curva pertinho da linha da pequena área.
    Gainete – goleiro gaúcho que veio do Internacional pro Atlético – olhou a trajetória da bola com uma expressão de susto. Um pouco depois do “segundo pau”, como costuma se dizer hoje, Gainete viu um vulto negro desviar de cabeça para o fundo das redes. Santos um a zero.
    Pelé deu o característico murro no ar e correu pro abraço de Edu, Abel e Toninho, seus companheiros de ataque.
    Nos anos 1980, no mesmo estádio – com o nome alterado para Couto Pereira – vi Zico jogando três vezes, duas pelo Flamengo e uma pela seleção brasileira.

    Mas ter testemunhado aquele gol do Pelé 40 anos atrás e hoje ler este texto do Tostão, quando o Pelé faz 70 anos de idade, é algo bem especial.
    Obrigado e um forte abraço, Zé.

  4. Tarquinio

    já que o sábado é de reminiscências, registro uma que envolve o Pelé e o Tostão. Foi o primeiro jogo de futebol que assisti pela televisão. Comecinho de dezembro de 1966.
    Decisão da TAça Brasil entre Santos e Cruzeiro no Pacaembu. No jogo de ida, 6×2 para o Cruzeiro no Mineirão.
    Com menos de 20 minutos já estava 2×0 pro Santos, gols de Pelé e Toninho. Pênauti para o Cruzeiro, Tostão cobra e o goleiro Cláudio – que naquele dia jogava no lugar do legendário Gilmar – defende.
    Mas Tostão diminuiu a vantagem santista e no segundo tempo, com gols de Dirceu Lopes e Natal – se não me falha a memória, que já anda me traindo – o Cruzeiro virou pra 3×2 e tornou-se campeão da Taça Brasil, interrompendo uma série de cinco títulos consecutivos do Santos.
    Eu tinha sete anos de idade, vivia numa pequena cidade portuária, era feliz e achava que o futebol era a coisa mais importante do mundo.

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