14:15Para varrer com boca-de-sino

No pátio do Colégio Champagnat (Curitiba), Alberto Centurião, Manoel Carlos Karam e Solda, de cima pra baixo – e vice-versa
Foto de Beto Bruel

O bom combate, independe. Janelas abertas, estátua derrubadas, mato crescido, pedestal a esperar a pose, a gozação, o protesto, a postura. Os anos eram os 70, mas poderia ser os 1.500. Filhos dos Beatles, filhos de Ghandi, filhos dos pensadores, dos arejados de cabeça, à procura de alguma coisa, que é essa mesmo, traduzidas, quem sabe, na boca de sino da calça xadrez a varrer ruas, a varrer pessimismo, a derreter o medo – porque gorilas sempre à espreita, de coturnos brilhantes, Inas engatilhadas, pentes de Colt 45 cheios, cadeiras de dragão à espera, ordem desunidas onde misturavam-se uniformes e ratos, contra todos nós brasileiros. Centurião e Karam torcem. Solda espera. Ninguém se conformou, ninguém se conforma. Escreveram, desenharam, falaram, para sempre, porque continua assim, mesmo com o que partiu antes do tempo, mas deixou lição de vida. Tudo é aprendizado, mas o não conformismo é preciso, modificar o caldo da geléia geral, para que ela se amolde a um mínimo de humanidade. E o não conformismo é procurar, abrir os poros, o coração, a alma, olhar para dentro, para antes, para as vozes, dos mais velhos, daqueles que nos fizeram, daqueles que nos ensinaram, daqueles com quem combinamos mesmo sem conhecer, mesmo à distância. A quatrocentos quilômetros deste Colégio Champagnat abandonado e cenário para o registro eterno, estava lá na vila da Zelê (Zona Leste) de Sampa, outra boca de sino, outro cabeludo, cavanhaque enorme, a ouvir as mesmas músicas, a ler os jornalistas, os inconformados, a furar o bloqueio para a missa em homenagem a Vladimir Herzog, mesmo sem saber direito quem era, mas inconformado com o assassinato transformado em suicídio na ópera bufa de quem sujou toda uma história por causa do descontrole geral e o sangue da raiva a turvar os olhos. Secundaristas colocaram a cabeça na guilhotina por um sonho ideológico sem se dar conta que o Brasil não era a Ilha, como disse o gênio Nelson Rodrigues, pois esta não passava de uma Paquetá. Do outro lado, quantos mil homens na ordem unida de esmagar grupinhos que jamais incomodariam a ditadura instalada. Mas era preciso, diziam. E fizeram. O bom combate, na verdade, estava na cuca, dos bichos grilos que fumavam maconha, não para aliviar angústias, mas para buscar o mais que não precisavam, pois o mais eram eles mesmos, nós, filhos da Bossa Nova, Tropicália, Woodstock, Chorinho, Samba, navalha nos dedos dos pés dos capoeiristas da África mãe, tacapes dos índios, Lampião, Corisco e Volta Seca, ancestrais saídos das prisões de Portugal para povoar e gerar nessa terra em que se olhando direito toda espécie de canalhas dissimulados há. Quarentões, cinquentões, sessentões, como os meninos eternos no pedestal da glória de ter resistido, de não nos tornarmos corruptos, de chutarmos o balde porque não devemos nada a ninguém, enfim, nós somos, mesmo que mundialmente anônimos. Rebeldes com causa, sim, atirando na cara de quem de tão podre já perdeu o sentido da vida, atirando na cara deles o que há de mais nobre, através do traço, das palavras, do grito, dos gestos, atirando a dignidade e o eterno não aceitamos. Centurião, Karam e Solda, com certeza, nunca souberam nada, mas sempre souberam tudo, porque o aprendizado vai até o fim na aventura emocionante da vida. Eram e são uma célula guerrilheira, como outras (quantas?), neste Brasil onde, misturando-se Darcy Ribeiro, Gilberto Freire, Ariano Suassuna, Glauber Rocha, Zé Trindade, Mazzaropi, Aldir Blanc, Garrincha, Pelé, Eder Jofre, com fundo musical de Hermeto Paschoal e a voz de Jackson do Pandeiro, chega-se à conclusão que é possível se iluminar tudo, apesar dessa imensa e ancestral força estranha e negativa contra todos nós – inclusive eles, os que se acham do outro lado e acima.

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