17:35Eu não sou Jesus Cristo

16.04-10-2010VB

Ilustração de Tereza Yamashita

de Rogério Pereira (http://vidabreve.com/)

A tarefa parecia fácil. Atravessar a longa sala, conversar breves instantes com algumas pessoas e escapulir escada abaixo. A tarde quente esmagava a cidade. O ar-condicionado perdia a batalha para o calor. Quando iniciei a travessia, olhos de desprezo, curiosidade e complacência me fulminaram. Retribuí na mesma intensidade. Labaredas pareciam calcinar computadores, cadeiras, mesas e jornais espalhados pelo imenso galpão transformado em empresa. Estava de volta ao inferno. Sem olhar para os lados, cheguei à outra extremidade. Uma travessia que me trouxe lembranças tristes, angústias e decepções. Passei naquele lugar os piores dias da minha vida. Não esperava voltar. Agora, era questão de minutos. Com a rapidez de um rato entorpecido por anabolizantes, saí da brevíssima reunião pela primeira fresta com trejeitos de porta. Na rua, evitei olhar para trás. O ar pesado da tarde entrava farto pelas minhas narinas. Antes, na escada, encontrei-o. Disse-me apenas “opa” e saltou os degraus em desabalada corrida. Neste momento, eu nem imaginava que o rapaz de passos apressados iria me confundir de maneira bizarra. Na pressa de escapar daquele lugar, esqueci de deixar o envelope. Coisa banal, mas que precisava ser entregue. Sem forças para retornar, já contornando a praça de poucas árvores, decidi voltar somente no outro dia. 

Por volta de uma da tarde do dia seguinte, voltei à portaria do velho galpão. “Preciso entregar este envelope”, disse à recepcionista. Em seguida, enumerei três possíveis destinatários. “Todos estão em horário de almoço”, informou-me a moça de uniforme azul e nenhuma presteza. “Posso deixar aqui?”, perguntei. “Não”, respondeu, sem qualquer cerimônia. “Não posso ficar com nada aqui na portaria. O senhor terá de voltar mais tarde.” Quando me preparava para iniciar a batalha argumentativa, ele surgiu novamente. Agora, gritou: “Oooopa”. Eu apenas balancei a cabeça em sinal de cumprimento. Fuzilou-me com palavras rápidas: “Ontem, eu fiquei te olhando. Tinha certeza de que te conhecia de algum lugar. Agora, tenho certeza. Sabe com quem você se parece?”. Sem qualquer intenção de continuar aquela conversa, novamente balancei a cabeça, agora em sinal negativo. “Você é a cara dele. Impressionante. Nunca vi ninguém tão parecido. É uma coisa muito interessante.” Irritado com a minha incompetência para entregar um simples envelope e diante daquela enxurrada verbal, perguntei (para me arrepender em seguida): “Quem? Com quem sou parecido?”. O rapaz apressado ficou em silêncio, mastigou bem as palavras e soltou com todas as forças as sílabas aprisionadas naquela mente criativa (ou doentia): “JESUS CRISTO. Você é a cara de Jesus Cristo. Incrível. Só falta a barba”. A recepcionista apenas abaixou a cabeça e tentou esconder um sorrisinho sarcástico que despontava no canto esquerdo da boca. “Não. Imagina. Nada a ver” foi o máximo que consegui balbuciar. “É sim. Você é muito parecido com Jesus.” Para meu espanto e para deleite da recepcionista, o rapaz dos passos apressados abriu uma pasta e escancarou uma enorme imagem de Jesus Cristo. Não havia nenhum sorriso sarcástico a me fulminar, mas aquela luz ao fundo da ilustração parecia iluminar o meu estupor. “Veja: você é a cara dele. Só falta a barba”. Segurando o envelope, olhava ora para a recepcionista, ora para o fiel rapaz. Não sabia o que fazer: se ainda tentava deixar o envelope na portaria ou fugia a passos de lebre desesperada. Paralisado — um verdadeiro Cristo na cruz —, continuei a ouvir o discurso: “E você não acha incrível que Jesus esteja em todos os lugares do mundo. EM TODOS OS LUGARES. Ele está aqui. Tenho certeza”, dizia, cada vez mais exaltado, sem desviar o olhar de mim. “Ele é o único que pode. Está aqui, no Japão, na China, nos Estados Unidos. E até no Paraguai”. Senti certo preconceito neste “até no Paraguai”, mas evitei o embate. “Está em todos os lugares ao mesmo tempo. Ele é demais. Ele é sensacional. E você é a cara dele. A cara dele. Só falta a barba. Só falta a barba. Meu Deus do céu, como pode ser tão parecido.” Ele parecia se emocionar a cada palavra. Antes que eu pudesse pensar em fugir dali, ele já ganhava a rua com sua pasta divina nos braços e um crachá a balançar no pescoço. A recepcionista olhou-me num misto de sarcasmo, ironia e pena. Mostrei-lhe pela última vez o envelope. Ela apenas soltou um “sinto muito”.

Ganhei a rua com o envelope nas mãos e a certeza de que não sou Jesus Cristo.

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2 ideias sobre “Eu não sou Jesus Cristo

  1. Marcelo

    Você sempre humilde diante de pessoas que reconhecem o teu verdadeiro valor. É isso aí, Rogério! Você é o máximo. Mas a tua humildade, tua principal qualidade, é ofuscante! Não mude, Rogério. Jamais!

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