7:02Em alguma direção

Ilustração de Tereza Yamashita

de Rogério Pereira

Enrique Vila-Matas — o estranho escritor catalão; e de quem descubro, num lance dos mais assombrosos, ser parente distante — busca desaparecer. Coisa simples: apenas desaparecer, esfumar-se. Deixar a cena sem ser notado. É claro que tudo não passa de um atraente jogo literário. Interessante a poucos. Esta idéia também me acompanha feito um cachorro vadio. Alimento-a na utopia da realização. Em sua angustiante Carta ao pai, Kafka desabafou: “O que eu queria era seguir existindo sem ser importunado”. Vila-Matas quer o mesmo. Eu penso nisto: sumir, ser outro, um personagem. No entanto, não há saída. Estou condenado a mim mesmo. Não que eu seja muito importunado. Sou apenas um anônimo zumbi no pântano. Mas quando vi que o trânsito fluía lentamente, arrastado pelo carro funerário, resolvi arriscar.

O porta-malas sufocava no odor da tinta dos jornais recém-saídos da gráfica. Tinha de levá-los à casa de minha mãe. Lá, entrariam em um envelope e seriam arrastados para os labirintos do correio. Há dez anos, todos os meses, faço sempre a mesma coisa: reúno um bando de malucos e, juntos, editamos um jornal literário. Agora, além da pressa do trabalho, a lentidão da morte. À minha frente, os carros se arrastam pelo intrometido calor de agosto. A abrir a fila, o comprido veículo funéreo. Nele, o caixão. Atrás, a ladainha dos que ficam. Ao final da fila, eu e meus jornais. Decido participar do ritual. Em vez de desaparecer, surgir, despontar, intrometer-me. Sigo até o cemitério. Em suas bordas, na infância, matei muito passarinho. Não ultrapassava os limites do portão por medo do segurança e temor dos mortos. Bastava-me o cheiro de sangue e pena a acompanhar-me no embornal pelas noites de assombração.

Ao estacionar, noto que o morto tinha alguma popularidade. Muitos já esperam a chegada do caixão. O carro funerário coloca-se diante da pequena sala enfeitada para a travessia desta para o desconhecido. Cinco homens se prontificam para amparar o morto. Outros vêm em solidariedade. Faltam alças ao caixão para tantas mãos caridosas. Imagino que um deles seja filho do morto. Não firma a mão na alça, não consegue olhar para a madeira que aprisiona o corpo. É um zumbi a escorregar pelo pântano. Eu acompanho o movimento dos demais. Caminho devagar, cabeça baixa. Visto camisa preta. Sempre estou de preto. Sou um homem prevenido.

Aguardo pelo momento em que a sala abafada tornar-se-á insuficiente para abrigar os urros que a morte expele de nossas bocas. Jovens cochicham, matraqueiam a respeito da novela. Um homem comenta o prêmio acumulado da loteria. Uma velha reza agarrada a um rosário. Dois moleques falam de música. Cada um espera a morte à sua maneira. Ao abrir-se a tampa, o rapaz (eu acertara) e duas moças se atiram sobre o corpo. Todos filhos do defunto. Noto, como sempre faço, as gordas flores a preencher os buracos entre o corpo e as laterais do caixão. São coloridas e espalhafatosas. Para as funerárias, a morte é colorida. Para os parentes, incolor.

Ninguém me percebe. Sou transparente, apenas uma nódoa daltônica. Sento-me no banco do lado de fora e sigo o movimento do velório. Ninguém me pergunta quem sou; o que faço; por que estou ali. Sou mais um a lamentar a tristeza. Pela aparência dos filhos, imagino que o homem tenha morrido jovem, com cerca de 60 anos. Ou menos. O rosto entre as flores é indecifrável. A morte tem a habilidade de driblar o tempo. É difícil prever a idade de alguém em cujas veias o sangue é um rio esquecido. Para passar o tempo e retardar meu retorno, faço cálculos, rabisco palavras na caderneta que sempre me acompanha. Tento entender por que estou ali. Não gosto de cemitérios. Sou desajeitado para a morte. Dirijo sempre a pensar no inusitado. No momento em que tomei o caminho do cemitério, na cola do féretro, pensava na obsessão de Enrique Vila-Matas pelo tema do desaparecimento (principalmente no romance Doutor Pasavento), na releitura de Carta ao pai, de Kafka, e nas frases que tanto me assombraram durante a leitura de Ribamar, de José Castello. Estes três livros me acompanham há um bom tempo. Mesmo depois da leitura, não me abandonam. A literatura é a melhor maneira de enlouquecer.

Quando levanto o corpo do banco, noto que uma das filhas do falecido me observa. Talvez tenha sido descoberto. Um impostor da dor alheia. Ela vem em minha direção, abraça-me e chora. Eu lhe digo que sinto muito. Sofro pela farsa criada e pela tristeza que não me pertence. Ela aperta minhas mãos e diz: “Pelo menos, ele parou de sofrer”. “É”, digo, com um caroço de abacate preso na garganta. “Quando tudo acabar, conversamos melhor”, ela diz. Eu, atônito, perdido e envergonhado, apenas balanço a cabeça afirmativamente. Ela retorna à beirada do caixão. Decido ir embora, levar os jornais à casa da mãe, dali ao correio. Para em seguida, começar tudo de novo. A cada mês, uma nova edição. Há dez anos é sempre igual.

Ainda não consegui desaparecer. Um dia, quem sabe.

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