8:15A ternura de Fidel pelos gays

por Ruth de Aquino*

Existe uma vantagem em envelhecer: ganhar tempo para se retratar e pedir desculpas. Aos 84 anos, Fidel Castro admitiu que perseguiu os gays, os prendeu e enviou para campos de trabalho forçado. Gostar de pessoas do mesmo sexo tornava os gays “contrarrevolucionários”, inimigos do regime castrista. “Se alguém é responsável, sou eu”, disse na semana passada, chamando a perseguição aos homossexuais de “momentos de grande injustiça”.

Quem assistiu ao belo filme Antes do anoitecer, de Julian Schnabel, sobre a via-crúcis do poeta cubano Reinaldo Arenas, interpretado por Javier Bardem, passou a entender o que foi a segregação de gays na Cuba de Castro. Com apenas 15 anos, Arenas lutou como guerrilheiro nas tropas que combatiam o ditador Fulgêncio Batista e que tomaram Havana em 1o de janeiro de 1959. Alguns anos depois, já poeta e escritor, tornou-se inconveniente. Por ser gay. Todos os seus manuscritos foram banidos e censurados. Publicava no exterior apenas, e contrabandeava seus textos com a ajuda de amigos influentes.

Preso, Arenas viveu num campo de concentração. E conseguiu finalmente exilar-se nos Estados Unidos. Foi um dos “Marielitos”, o grupo de dissidentes, criminosos, doentes mentais e homossexuais que em 1980 deixou o Porto de Mariel em direção a Miami, com endosso de Castro. Em 1987, aos 42 anos, no auge da criação intelectual, descobriu ter contraído o vírus da aids. Escreveu a autobiografia que deu origem ao filme e se matou em 1990 com uma overdose de remédios.

Estive em Cuba em janeiro de 1984, no Festival de Cinema que premiou o filme Memórias do cárcere, de Nelson Pereira dos Santos, sobre a vida do escritor Graciliano Ramos. O Brasil ainda não tinha relações diplomáticas com Cuba. A viagem era uma epopeia, indo pela Colômbia, voltando pelo México, com o compromisso de o passaporte não ser carimbado, porque poderia haver problemas no Brasil. Tudo uma grande hipocrisia. Turistas e intelectuais brasileiros, simpatizantes da revolução cubana ou curiosos iam a Havana e todo mundo sabia. Nas ruas e em shows, ouvi de gays queixas contra o preconceito. Como se a homossexualidade fosse uma doença antissocial. Um tapa na cara da revolução.
Castro poderia aproveitar e estender seu mea-culpa aos presos políticos – cujo único crime é discordar dele

“Hay que endurecer pero sin perder la ternura”, recomendava Che Guevara. Fidel Castro, octogenário, parece ter recuperado a compaixão. Sua entrevista a um jornal mexicano foi surpreendente: “Sim, foram momentos de grande injustiça, uma grande injustiça! Fomos nós que fizemos, fomos nós. (…) Tínhamos tantos e tão terríveis problemas, problemas de vida ou morte, que não prestamos atenção suficiente. (…) Mas não vou jogar a culpa nos outros. Assumo a minha responsabilidade”.

Uma grande ironia é que o maior bairro gay do mundo se chame, por pura coincidência, “Castro”. Fica em San Francisco, Estados Unidos. Foi ali que Harvey Milk se tornou o primeiro político americano a se candidatar abertamente como homossexual. Foi assassinado, depois de eleito vereador.

Nesses momentos, quando fica clara a intolerância humana e até onde o radicalismo ideológico, religioso ou político pode nos levar, é preciso pensar sobretudo na preservação da liberdade. Liberdade de discordar, de criticar, de não ser igual. Sem medo de patrulha de qualquer coloração. Até em eleições polarizadas como a do Brasil, uma democracia sólida, surgem ameaças veladas ou agressivas ao livre pensar. Em regimes populistas como na Venezuela, o perigo é evidente, real, não é mais possível opor-se a Chávez.

As ditaduras, de esquerda e de direita, são abomináveis porque não aceitam um modo de pensar diferente. Tiranos violam direitos humanos com base em cartilhas cuja diretriz máxima é que os fins justificam os meios. Quando alguém deseja se perpetuar no poder, qualquer divergência é uma ameaça.

Castro poderia aproveitar esse momento de ternura tardia pelos gays e estendê-lo aos presos políticos e à blogueira Yoani Sanchez, proibida como tantos cubanos de viajar para fora do país. O único crime deles é discordar.

* Ruth Aquino é diretora da sucursal da revista ÉPOCA no Rio de Janeiro

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