9:42A grande herança

José Antonio da Silva, o Zé Luis

A grande herança vem quando a gente olha no tempo e tudo fica depurado pelo que vivemos, pelo que sofremos, pelo que aprendemos. Aí sentimos saudade e felicidade ao mesmo tempo. E nessas datas onde o sentimento aflora, porque existe lá dentro, represado, marcado no coração, na mente, na alma, choramos de alegria e tristeza. Alegria por termos a felicidade de sermos filhos daquela pessoa, tristeza porque, para muitos, como este aqui que busca palavras lá onde não sabemos onde é, mas que existe como o amor, eles se foram na forma de corpo e não podemos mais recuperar o tempo perdido. Sim, tempo perdido naquela revolta juvenil que também não entemos por que, ou ainda no distanciamento emocional e físico, como aconteceu, por motivos, vamos dizer, doentio e profissional. Na verdade, nada foi perdido, apenas aprendido, até brinca perigosamente com a vida que ele nos deu de presente, como enviado especial de Deus. Então, o grande filtro que chamamos experiência nos faz olhar ele assim, como na foto acima, bonito que só, elegante que só, mesmo que sempre carentes dos chamados bens materiais. Mas os tempos desta foto eram outros, e ele estava no Rio de Janeiro do final dos anos 40 e início dos 50, quando olhava tudo com estes olhos que eram azuis cristalinos como pedras preciosas, olhos que encantaram dona Zefa, a companheira da longa caminhada onde aparecemos, eu e o Ricardo Silva, artista das fotos aqui publicadas. Este meu Zé saiu do sítio que também era Zé (São José), pouco depois de calçar os primeiros sapatos, aos 15 anos, e caiu na eterna capital do Brasil. Mas sempre amou seu pedaço de chão, sua origem, seu pai, o Antonio Luis, de quem herdou para o apelido o sobrenome. Para lá voltou, meio século depois, como se tivesse cumprido a grande missão. E tinha! Foi garçom no Rio, operário e pequeno comerciante em São Paulo. Nos deu o ensino da escola e o das atitudes, sem falar muito, sem nhenheném, mesmo porque foi assim que aprendeu. Tinha o agravante de atravessar todo o caminho carregando as garras depressivas – e aí, imagina-se o quanto tudo foi tão difícil, pesado. Só quando saí do último internamento, com 40 anos, por conta da doença da dependência, que ele tinha também, consegui ver tudo isso. Numa lauda de revista, escrevi uma imensa carta de agradecimento por tudo, enviada lá para a Palmeira dos Indios, Alagoas, a terra dele. Numa das visitas que fiz depois, soube pela dona Zefa que, ao ler, ele chorou baixinho. Descobrir o anjo que havia em meu pai foi uma das maiores felicidades que tive na vida, pois o retrato que tinha marcado forte era o de um homem de semblante fechado, de pouquíssimas palavras, cujo olhar fazia tremer. Até então, na lembrança, num único momento ele abriu o dique para expor sentimento, mas na época não havia como entender aquilo. Na partida para o estágio do CPOR, num quartel da Grande São Paulo, ele chorou feito menino, como se o filho estivesse partindo para uma guerra. Eu beijei meu pai pela primeira vez na vida no primeiro encontro depois que saí da clínica. Meu pai me beijou três visitas depois de eu ter tomado a iniciativa. Jamais  imaginei que aquilo fosse acontecer um dia. Naquele beijo estavam todos os que ele quis dar e não conseguiu durante toda uma vida. Já estava imobilizado por uma doença degenerativa que o paralizou da cintura para baixo. Pouco tempo depois, sua Zefinha, que o tratava como “Filhinho”, foi embora. Ele esperou um pouco – e foi atrás. Ricardo, o filho mais novo, cuidou dele o tempo todo. Nos encontramos no hospital onde ele ficou os últimos dias neste mundo dos homens. Ali, no revezamento que fazíamos para ficar as 24 horas ao seu lado, agradecemos. Zé Luis deve ter partido com a certeza de seus dois filhos tinham encontrado um caminho menos sofrido que o dele. A grande herança que nos legou.

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