18:35HORÓSCOPO

por Zé da Silva

Gêmeos

Guardou todos os recibos das contas que pagou desde que ganhou o primeiro centavo em troca de trabalho. Herança maldita dos antepassados, começou cedo na lida. Trabalho braçal. De todos os tipos. De carregar massa de concreto a cavar buraco no asfalto em dia de Saara. Cumpria com suas obrigações. Achava que isso era outra herança maldita. Não sabia porque guardava aquela montanha de papel e a carregava nas várias mudanças feitas durante boa parte dos anos em que tinha energia suficiente para… para… trabalhar. Nunca casou. Nunca namorou. Não era feio, mas se achava. E o dinheiro que ganhava mal dava para comer um bife uma vez por semana. O máximo que conseguiu na vida foi comprar uma bicicleta de quinta mão – e morar num quarto e cozinha num quintal onde havia mais oito “casas” como a dele. E era na periferia da periferia da cidade grande e poluída. Num domingo onde até as pilhas do radinho foram para o espaço, e ele não tinha dinheiro para comprar outras e ouvir seu time jogar, ele resolveu começar a somar tudo o que tinha pago na vida. Trabalhou metodicamente nisso. E de forma obsessiva. O número final, conseguido depois de várias madrugadas e finais de semana, era tão astronômico que ele não sabia como tranformá-lo em palavras. Queimou tudo. E, a partir daí, passou a rasgar todas as contas que o achavam naquele endereço. Sentiu-se tão leve com o ato, que era como se tivessem tirado das costas aquele número, marcado num papel que carregava num compartimento da carteira surrada, número este transformado em quilos. Quando surgia um cobrador, ele falava que não era ele. Assim, sobrou-lhe um dinheirinho no final do mês. Ele então comprou roupas mais decentes e passou a frequentar bancos, onde pedia empréstimos que não pagava. Falsificou identidades, comprou um carro, em pouco tempo já morava num flat e até começou a namorar uma moça de família classe média alta. Um dia apareceu em coluna social no jornal e sua vida decolou. Virou empresário. Do ramo da construção. Daí, para entrar no grupo de milionários da cidade, foi um pulo. Gostava sempre de dar palestra aos seus funcionários. Contava o quanto tinha sofrido para chegar ali. A parte do calote ficava só para ele. E para a secretária particular. A quem dava ordem para não pagar nada. Só que, agora, não era cobrado. Por isso, nem guardava a papelada de cobrança. Mandava picotar em máquina apropriada. Envelopes sempre fechados.

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