6:51Pamonha underground

de Rogério Pereira, publicado no site “Vida Breve” (http://vidabreve.com)

Ilustração: Tereza Yamashita

Quando a morena de mãos delicadas e corpo delineado à perfeição perguntou-me se eu estava animado com a vinda do Lou Reed ao Brasil, fiz cara de pamonha recém-cozida. Minha ignorância deve ter pintado um quadro terrível nos vincos do rosto. Ela, gentil e bela, explicou-me: “o músico, Lou Reed, genial, estará na Flip”. Não sei quem é Lou Reed, nunca fui à Flip. Às vezes, este mundo me parece um lugar excessivamente irônico para se viver (e morrer). Ainda mais para um ser ignorante, daltônico e surdo.

Não tenho a menor ideia de quando a surdez me engalfinhou. Simplesmente aconteceu. Acordei e o silêncio envolvia-me no catre ao lado do irmão. Os sons não penetravam meus ouvidos. Na infância — este depósito de ilusões — com certeza. Não havia discos. Nossa casa sustentava-se em silêncios e ausências. A música quase nunca nos visitava. A não ser a do vendedor de pamonha nos sábados pela manhã; ou a do caminhão do gás. Um dia, encontrei o único disco do pai no vão da janela a estorricar sob a réstia impiedosa do sol. Tentei salvá-lo. Não que tivesse algum amor por aquela bolacha negra e fina, pouquíssimas vezes escutada. Mas o pai poderia ficar bravo ou triste. Não deu tempo. O disquinho, do grupo Os reis do fandango, tornou-se uma roda disforme, empenada, sem qualquer rumo. Na vitrola, a voz saía sufocada, como se os músicos aprisionados no calor do LP derretido estivessem no inferno a pedir clemência ao demônio.

Na adolescência, tentei curar a surdez nas festinhas no barracão atrás da igreja ou na danceteria, onde os gestos dormentes pela caipirinha de groselha tentavam moldar corpos femininos na parede. Desta incursão, sobrava-me apenas uma dor terrível no pescoço, sempre na tentativa de acompanhar a loucura que o rock provocava nos corpos juvenis nas décadas de 80 e 90. A cabeça tentava se desprender do resto do corpo. Não entendia as letras. Nunca aprendi inglês. No guarda-roupa, as estampas louvavam o capeta, dizia a mãe, com o rosário entre os dedos a contar os minutos para entrar no Reino de Deus. Nunca os diabólicos desenhos espetados no peito das camisetas pretas tiveram o perdão materno. Uma vez, usei uma delas (a mais terrível: a do Black Sabbath) por baixo da camisa durante a missa. Eu era o coroinha. Contei as hóstias com o diabo a fustigar-me a pança. Não aguentei. No confessionário: “Padre, o demônio esteve entre nós. Perdoe-me”. Nunca rezei tanto na vida.

Pecador e ignorante, abandonei de vez o mundo musical. Nunca acompanhei as tendências, nunca comprei discos ou CDs. Não lembro do último show a que assisti. Ao todo, não chegam a cinco. Quando ia, tinha outros objetivos. Quase sempre sexuais ou etílicos. Não sei nenhuma música de cor. Nos aniversários, erro o Parabéns pra você. Envergonho meu filho tentando-o embalar na madrugada ao som do meu grasnar analfabeto. Não tenho este aparelhinho onde cabem milhares de músicas e tornam as pessoas em pequenos ventríloquos nas calçadas. Sou curioso: o que entra pelos ouvidos desta gente que caminha com os ouvidos entupidos por aqueles pequenos fones? Algo muito interessante, com certeza. Por que eu não ouço?

Incontáveis vezes, entrei no carro e lá está o rádio ligado a chiar um som qualquer. Ligo o rádio do carro na tentativa de acostumar os ouvidos. Impossível. Desligo o carro e abandono o rádio como se não existisse. Um defunto falando sozinho. Na volta, a chiadeira. Desisti. Roubaram o rádio. Certo alívio percorre-me sempre que olho aquele buraco no painel. Levaram o inimigo, penso.

À beira da derrota, tentei de tudo: jazz, bossa nova, música pop, clássica, rock, MPB, samba de raiz, soul, pagode (até gostava das dançarinas ao fundo e suas bundas e coxas além da imaginação), gospel (talvez Deus me salvasse; mas descobri que Deus tem outras prioridades), blues, sertanejo, e outras coisas indefiníveis. Nada me levou ao reino da música. Somente o silêncio me domina.

Agora, o Lou Reed — líder da lendária banda The Velvet Underground. Desde que a morena alertou-me para a sua chegada, Reed parece um fantasma a me assombrar. Em todos os cantos: Lou Reed. Pelo correio recebo o informe de que seu livro Atravessar o fogo acaba de ser traduzido no Brasil. Na Flip, os ingressos para assistir ao bate-papo esgotaram-se em dez minutos. Chego a acreditar que é coisa divina, a mão de Deus tentando me indicar um rumo musical na vida. Não pode ser. A ironia divina não chegaria a tanto. Um amigo conta-me que Lou Reed foi casado com um travesti. Caramba! Talvez esteja aí o motivo do título do livro: Atravessar o fogo. Acho que está mais para coisa do capeta. Meu pecadilho de contar hóstias com Ozzy Osbourne a bailar no peito é pura ingenuidade perto do traveco vestido de noiva rumo ao altar de perdição. Maldita hora em que Adão e Eva enjoaram do Paraíso.

Já estava com as malas prontas quando recebi a triste notícia: Lou Reed cancelou sua participação na Flip. Alegou “problemas pessoais”. Desfaço a mala. Não será desta vez. Acho melhor abandonar esta batalha. Minha surdez não tem cura mesmo. Tenho de guardar forças para quando começar a ficar cego. Ou seja, em breve. Além do mais, o bate-papo com o Lou Reed na Flip tinha o singelo título “O som e o sentido”. Com certeza, não faria qualquer sentido para mim.

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