10:06Os anões

por Rogério Pereira, publicado no site Vida Breve (http://vidabreve.com):


Ilustração: Tereza Yamashita

À mesa do jantar, os anões sentaram. Tinham pernas e braços curtos. Rimos à beça deles e com eles. Nunca havia jantado com anões. Anões, estes pelo menos, são espirituosos, contam anedotas de si mesmos, das trapalhadas do cotidiano planejado para extensões de corpos mais alongados. Anões não comem pouco. Anões não bebem pouco. Anões são sacanas. Anões gostam de sacanagem. Anões trepam. Anões se embriagam. Anões contam mentiras. Anões choram. Anões riem. Anões lêem poesia. Anões, alguns, me apavoram.

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Durante a semana, vários anões me encontraram. Todos por acaso. Nenhum encontro marcado. O acaso me levou aos anões. E eles a mim. Quando liguei a tevê, não tinha qualquer esperança além de ser embalado por uma imagem qualquer rumo ao sono. No sofá, depositei o corpo à espera da insônia — este demônio que me arranha a pele nas madrugadas. Ao primeiro toque no controle remoto, ela apareceu. Era pequena. O corpo proporcional, mas diminuto. A reportagem mostrava uma anã a fazer caras e bocas diante de um alemão gigantesco. Ela, de perninhas muito abertas, gritava para ser possuída. O alemão a agarrava pela cinturinha e entrava no corpinho. A anã fazia uma expressão de gozo. Olhava para câmara e dizia algo como “mais, mais, mais”, em alemão. Até este momento, não havia legendas. Aos poucos, tirei a cabeça do travesseiro improvisado na almofada e sentei-me. A anã me olhava de frente, enquanto o alemão a possuía de lado. O alemão dava umas três anãs de altura. O alemão era forte e branco. E tinha uma barriguinha. A anã era musculosa, músculos de anã, e não tinha barriga. Os seios eram pequenos, mas proporcionais ao resto do corpo. Levava um piercing atravessado na língua. Nos bracinhos havia tatuagens. Pequenas, é claro. Tinha algo dependurado no umbigo. Não tinha pelos pubianos. Não tinha pelos em nenhuma parte do corpo. O cabelo era feio. Ela parecia gostar muito do alemão. Na outra cena, o alemão a pegava no colo e a fazia cavalgar. A anã não caía do cavalo, colocava as mãozinhas na barriga do alemão. E cavalgava. O alemão fazia cara de gozo. A anã também. Eu, sentando no sofá, apenas olhava. Ao fim desta cena, entra a repórter. Informa que a anã é uma das grandes estrelas do cinema pornô alemão. Ao fundo, o alemão pega a anã de quatro. A anã está sobre o criado-mudo. Fico com pena da anã. Penso que o alemão não pode ser um cara bacana. Não tenho nada contra alemão. Mas, caramba, este alemão não é gente boa. Mas a anã não reclama. Faz mais cara de gozo. A repórter introduz o microfone perto da boca da anã. A anã diz que se sente “muito mulher” ao fazer filme pornô. O alemão sacana continua ali por dentro da anã. Nada escapa. Parece. O alemão diz que a anã é muito boa atriz. Nem um pouco rasa. Não entendo se a frase tem duplo sentido. A insônia agora me domina completamente. A anã também. O alemão está em pé. A anã também. Fazem sexo oral. Em pé. A reportagem segue. Uma loucura. A repórter mostra imagens de filas de fãs numa sessão de autógrafos. Todos levam DVDs sacanas da anã. Um rapaz com cara de alemão diz que ela é sensacional, faz coisas incríveis. Chega a dizer que é apaixonado pela anã. A anã aparece bem grande num cartaz ao lado do rapaz. Mostra todo o corpinho e tem cara de gozo. A reportagem volta para o quarto onde a anã e o alemão terminam a cena. A anã está no colo do alemão. O alemão beija a anã. A anã parece gostar. A repórter está indiferente. A anã conta que foi descoberta numa boate, enquanto dançava com amigos. Não diz se eram anões. Ao fim da reportagem, a anã confessa que o seu grande sonho é contracenar com outra anã, numa cena de lesbianismo. O alemão a olha com cara de espanto. Parece estar com ciúmes. A repórter encerra a reportagem dizendo que “conhecemos uma grande história”. Antes de desligar a tevê, vejo que o videocassete está ligado. Ao seu lado, o DVD preferido de minha filha: Branca de Neve e os sete anões. Acho melhor tentar dormir.

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Quando contei esta história à mesa do restaurante, a mulher do escritor disse: “Tenho um amigo bem grande, quase dois metros, que namora uma anã. Ele a leva para a praia no colo, parece uma boneca. Nem imagino como eles transam. Deve ser complicado”. Eu sei, penso. Mas não digo nada.

Na mesma noite, outro amigo conta a história do carrinho de bebê fantasma. Na rua, avistou um carrinho vindo em sua direção. Vinha sozinho, movido por forças estranhas. Ao se aproximar, viu a mãe anã a empurrar o carrinho. Dentro, um bebê anão. Ou um anão bebê. A vida de anão não é fácil, pensou. Nunca.

Quando cheguei ao escritório no dia seguinte, o porteiro me entregou o envelope. Dentro, um livro grosso, bonito, todo preto. O título: Os anões, de Veronica Stigger. Leio os contos naquela noite, sentando no mesmo sofá da madrugada insone a mirar a anã e o alemão.

Ao fim da leitura, ligo novamente a tevê. Na reportagem sobre a Copa do Mundo, os técnicos são o assunto. Em especial, a elegância de alguns. E o ridículo de outros. Maradona e Dunga estão na tela. Deixo a tevê sem volume. Sempre. Apenas leio a legenda da reportagem: Técnicos e suas vestimentas. Título ruim, penso. Maradona beija efusivamente os jogadores argentinos. Seu terno parece ser dois números maior que o ideal. Um anão de jardim coberto por uma capa de chuva. Dunga deixa a língua de fora durante muito tempo. Dizem que é uma mania. Mania feia, penso. A língua do Dunga me parece inchada. O Dunga se veste muito mal. Na Copa só usa um jaquetão. Não é feio. Mas também não é bonito. É de um estilista famoso. Famoso e de gosto duvidoso. Não entende nada de moda. A anã e o alemão não saem da minha cabeça. Sempre que ligo a tevê, eles aparecem na minha frente. Sempre trepando. Agora, Dunga e Maradona. Será que eles também trepam feito aquele alemão? Ou aquela anã? Coisa estranha de imaginar. O Dunga parece bravo. O Maradona parece louco. O Dunga não tem cara de alemão. O Dunga tem cara de anão.

Preciso dormir mais.

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