22:32Quando me for na suavidade do esquecimento

de Zeca Corrêa Leite                                                                          

Quando me for na suavidade do esquecimento pedirei a Deus
que permita que eu me desnude de mim sem pressa…
Mesmo com a premência da partida,
que Ele me dê um novo tempo para tirar de minha alma
as vestes com que me cobri.
Umas mais leves, outras pesadas, todas desnecessárias.
Quero desfazer-me das ilusões, dos perdões, das culpas,
das santidades, dos pecados, das desilusões,
das translúcidas sedas das angústias.
Livrar-me das camadas de ira, vinganças sem memórias,
dos tecidos enrijecidos – quase metais –, imobilizados pelo medo,
ansiedade pelo próximo instante, lembranças emotivas,
saudade, arrependimento, pressa, preguiça, desesperos
sentimentos que se desfizeram e morreram,
mas deixaram poeira nos caminhos por onde passaram.
De tudo vou querer me livrar: dos conceitos, preconceitos,
leitura vil dos olhares em segredo, minha voz
dizendo aos meus ouvidos mentiras atordoantes,
o apego ao que era transitório, vaidades bobas,
dias que não deixei partir.
Deitar ao chão esculturas e versos, romances de fogo e gelo,
cenas dos palcos inebriados, mares de abandonos e sonhos,
peixes nas redes dos pescadores, salmos, círios,
reflexões e hinos, espíritos vagando pelos templos,
vida e morte curvadas nas rocas fiando lentamente
eternidades, abismos e ventos.
Com o mesmo cuidado com que deposito na terra
poemas que não escrevi, ali também colocarei
trapos de luzes e oiros, o olhar mais terno,
palavras duras de meus lábios desprendidas,
gestos de aproximação e desprezo, vilania de friezas.
Rios de emoções que me envolveram, sabores dos frutos,
agonias das madrugadas, fotografias esmaecidas,
paisagens ambicionadas, alquimia dos alimentos,
águas que me lavaram e jamais levaram
as vestes com que me vesti.
Quero me despir da vida,
daquilo acumulado nos escaninhos do peito.
Na esperança – vã? – do nada, talvez esteja pronto
para atender ao chamado de Deus
em meu completo abandono.
Seguirei ao encontro do Mistério,
eu, rastro de luz e tempo,
 esquecido de toda alegria, expectativa, lamento,
apenas indo, nu, olhos vazados, na suavidade do esquecimento.

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