11:50Sobre a arte de escrever

por Paulo Ludmer

Os textos jornalísticos frequentemente não cumprem o que prometem. Padecem de problemas e desafios similares aos dos textos literários. Escrever é arrumar palavras, sintetizou o poeta Mallarmé. Tão simples? Nada disso! A complexidade mora nesta síntese. O premiado argentino J.L. Borges acrescentou que quem escreve é o outro. Sim, o leitor é nosso outro. A palavra na cabeça do escritor não é a mesma quando injetada na do leitor. Narrar é doar, semear o solo. Quem escreve é generoso. Mas nada é só bom. O ficcionista obedece a um foco narrativo (quem conta a história, quando, como, a quem). A imprensa prefere um “eu” narrador. Jornalistas experientes escrevem relatos com facilidade. Mas esta verve por vezes envenena e atrapalha ao realizar literatura, que requer a criação de personagens. Cada um deles é outra voz no peito do autor. E os jornalistas, na sua militância, não criam personagens: desfazem enigmas, enquanto noutro território os artistas os erguem.

O repórter põe na boca do entrevistado a concretude do que é relatado. O escritor arranca de si a veracidade de um personagem que é outro de si. Bons repórteres e bons escritores, quando bem-sucedidos, conseguem iludir leitores, fazendo-os acreditar que foi fácil escrever, que ele, leitor, teria redigido aquilo que lhe parece tão fluente. E o jornalista recorta, articula e interpreta.

A genialidade de Machado de Assis é exemplo: ele pode ser lido por adolescentes ou doutores, jovens e velhos, leigos e eruditos, com o mesmo grau de interesse. O poeta João Cabral faz parecer uma elogiosa cantada à moça, para a qual dirige um poema, quando na verdade através dela exibe plumas de saber e de beleza. A moça não passa de apetrecho. Há autores pouco estudados, como Guimarães Rosa. Este mineiro e os textos de suas comitivas que partiam de Cordisburgo, rumo às Gerais, inventou uma língua nova extraída das comitivas. Assim, Rosa traduzia os estratos da sociedade mineira em relacionamentos intestinos, em época e maneira única.

No teatro de Nelson Rodrigues, parecia se reproduzirem diálogos reais da classe média do Meyer e da Tijuca, quando só um leitor muito qualificado observará que na linguagem coloquial não se responde eternamente uma pergunta com outra pergunta.

Arrumar palavras? Pois o cérebro do jornalista, como o de qualquer homem, as escolhe depois de uma luta interior, silenciosa e solitária. Se a estética convida ao hermetismo, as emoções pedem um fácil entendimento. Se a moda pede a concisão, ela solicita utopias como sentir e pensar a um só tempo. Inventar palavras? Só se as da língua não derem conta.

Borges insiste: o leitor é o outro. Mas na escola de Paris já se contesta esse conceito: concordar com Borges é anular-se. O rumo seria o oposto: escreva, e o leitor que se arrume. Afinal, qual é o ideal? O poeta Rilke indica ao jovem que deve escrever se o ato for tão essencial quanto urinar, ou dormir. Pois não são poucos os célebres autores de um só livro: Raduan Nassar, Salinger e outros. Ou então aqueles que só produziram quando jovens, feito Rimbaud. Por sua vez, o contista Isaac Singe sugere que escrever deve driblar armadilhas como a busca de reconhecimento. Comenta-se nas academias que no Brasil existe mais gente que escreve do que gente que lê. Nasceram inúmeras editoras que, patrocinadas, executam o produto livro. Não há mais vestígios dos ensinamentos da Civilização Brasileira, José Olympio e tantas outras que, nos anos 50/60, não editavam sem o crivo de conselhos editoriais.

Se, em redações paulistas, mestres como Roberto Müller, Claudio Abramo e Murilo Felisberto admiravam a potência de frases com sujeito, verbo e predicado, na literatura o grande amor é pelo substantivo. Observe-se que em alemão substantivo se escreve com letra maiúscula. Um texto deve ter ação, cheiro, volume, tato, cor, sabor, conflitos… No jornalismo não?

Texto deve pegar o leitor no primeiro parágrafo. A seguir, nas frases esparramadas, que cumpra o que prometeu. Escrever é sonhar com o bom leitor. E a arte de escrever cumpre promessas desde a primeira frase.

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