7:20O bom ladrão

De Rogério Pereira, publicado no site “Vida Breve” (http://vidabreve.com):

Pertenço à estirpe dos salafras. Sou — sem qualquer culpa e certo orgulho — um safardana. Um vil cidadão a roubar, a destruir histórias e vidas. Invado cidades, pilho intimidades. Percorro o corpo de donzelas frágeis, compactuo com mentiras, alegro-me com guerras e adultérios, esmago humanidades. Além de delinquente, um mau-caráter capaz de envergonhar a avó crente na inocência do neto. Um ser desprezível, rato a esgueirar-se pelos esgotos construídos nos subterrâneos, por onde poucos se atrevem a aventurar-se. Não tenho vergonha: furto, roubo, subtraio, cometo atrocidades. E, célere lebre arisca, tomo outros rumos. Nunca flagrado, jamais detido. Meus crimes se empilham feito caixas de laranja no mercado municipal. Levanto uma torre babélica de delitos capaz de envergonhar latrocidas. Construo, com engenhosidade criminosa, uma fieira de grandes e pequenos delitos. Fausto suburbano, até com o demônio já pactuei. Deus, nesta hora, tenho certeza, balançou a cabeça em sinal de desaprovação. Comecei tarde, é verdade. Poderia ser muito mais bem-sucedido. Agora, paciência. Mas com dedicação e métrica, alongo minha ficha criminal. Não me preocupo com a pena ou castigo. Eles virão, bem sei. Sou ladrão, não tolo.

Acho que a mãe — esta incauta figura que quase nunca desconfia do monstro posto no mundo — nunca desconfiou de nada. Mas não tenho certeza. Naquele dia, logo após eu concluir cambaleante o curso universitário e chegar em casa, ela disse: “Agora, pode vender seus livros, meu filho. Não precisa mais deles”. Havia, acredito, praticidade nos movimentos daqueles lábios. Poderia ter-lhe dito que nunca precisei deles — daqueles que se amontoavam pela casa — para nada: estudar, passar de ano, aprender algo prático. Não tinham serventia. Ocupavam espaços. Nada mais. Eram apenas mentiras inventadas por mentirosos ardilosos e falastrões. Mas não quis causar mais uma decepção: além de ladrão, amante de falsidades. Filho ingrato saído do útero fértil.

Mas a casa precisava respirar. Aliviada, talvez. Os livros tinham de devolver o espaço surrupiado de pratos, xícaras, copos, garfos, facas, calças, camisas, cuecas e meias. Em cada fresta, um livro. Em cada distração da mãe, um livro. Em cada oportunidade, um livro. A casa era sustentada por mentiras. Aos poucos, construí estantes improvisadas. A geografia doméstica entrava nos eixos: no lugar de pratos, pratos; no lugar de livros, livros. Na precária acomodação, multiplicaram-se atabalhoadamente. Nada os impedia de procriar. Enquanto ninhadas surgiam a cada mês, eu tornava-me um aprendiz de salafrário. Descortinava os meandros que me seduziam. Não temia o flagrante. Era um tanto descarado. Não me importava com os olhares hostis. Formava-me um criminoso sem qualquer remorso. Nem mesmo as idas frequentes à missa de domingo arrefeciam a sanha delinquente. Continuei a roubar, furtar, consentir com delitos grandes e pequenos. Cérbero pestilento, manco a rondar vidas alheias. Fuxiqueiro desavergonhado. Incentivei adultérios nas pradarias russas e o riso de escárnio no interior de manicômios. Eu, o altaneiro sacripanta das araucárias, moldado nos bancos disformes diante das prateleiras atulhadas de manuais de ladroagem. Aprendi torto por linhas mais tortas ainda. Da Bíblia, roubei parábolas. Dos demais, vidas inteiras. Despedacei famílias, reinos e exércitos.

No sábado, escondido no bunker à espera do apocalipse, ou da prisão perpétua, vasculhei páginas, revirei personagens, esquadrinhei tramas. Não buscava nada. Nunca busco nada. Apenas atiro-me no abismo. Tudo é incerteza. Onde isso acabará? A resposta não está lá. Não está em lugar algum. E, por isso, continuamos em queda livre, a céu aberto, ávidos criminosos de nós mesmos, em busca de um sentido que nunca chegará. Interrompo a leitura quando a frase me encontra, escancara-se. Sorrateira, pulsa, insinua-se no interior da biblioteca. Não é original. É, na verdade, um lugar-comum. Um bom lugar-comum: “Todo leitor é um ladrão”. É o suficiente para congelar a tarde ensolarada e lembrar-me de que pertenço à estirpe dos salafras.

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