6:54Sexta-feira da Paixão

Por Thea Tavares

“Marina, quem é Deus”? Foi assim que a Lilica, de cinco anos, acordou a irmã mais velha na manhã do Domingo de Ramos, aquele que antecede à Semana Santa no calendário cristão. Não se sabe quanto tempo a pequena ficou ali, prostrada ao lado da cama, esperando que a irmã acordasse e respondesse aos questionamentos que lhe pipocavam na cabeça. Marina só lembra dos grande olhos da Lilica sobre ela como a primeira imagem que enxergou ao abrir os seus também. “Quê?”, foi só o que conseguiu expressar.

Como ela iria explicar à moleca perguntadeira, numa linguagem simples e fácil de assimilar? Puxou pela memória as aulas da catequese para achar a melhor resposta: “É uma força superior…” E foi logo interrompida pela Lilica: “É um cara maior que todos nós, que cuida da gente e a gente reza pra ele?”, perguntou já respondendo. “Éééé!??” E ficou essa mesma. Qual seria a origem daquele questionamento, pensou a adolescente intrigada?

Não fazia muito tempo, a família havia contratado uma nova funcionária em casa para atender a pequena no período em que ela não tem aula. Seu nome é Rosa. Rosa é bastante religiosa. Quando não está ‘pregando’, entoa cânticos da liturgia dos cultos que freqüenta. É bem afinada e tem uma voz marcante. Talvez por isso os ensinamentos de sua doutrina fiquem mais impressos na cabeça da menina; uma cabecinha considerável e brilhante, que comporta milhões de idéias todo santo dia.

Outro dia, no trajeto de ida para a escola, a Lilica já tinha mais temas existencialistas para abordar. Enquanto espera o sinal de trânsito dar permissão para o carro prosseguir e o silêncio parece quase se materializar dentro do veículo, a Lilica solta uma pérola: “Encontrei o meu caminho!” Pai, mãe e as duas irmãs voltam a atenção para a caçula. “Que caminho é esse, Lili? O da escola, pra onde a gente está indo agora?”, perguntou a mãe. “Ah, não sei que caminho que é, mas a Rosa disse que eu encontrei”, falou. Todos tiveram de se render ao charme da situação.

“Vocês têm ensino religioso na escola?”, quis saber o pai. E pelo restante do ‘caminho’ diário, foi se perguntando se já não estaria na hora de conversar seriamente com a menina precoce sobre temas tão profundos. Ao mesmo tempo em que queria saber mais sobre como eles foram introjetados na cabecinha da Lilica: se de forma respeitosa, livre de preconceitos, de sentimentos de culpa ou de medo. Ele sempre defendeu a liberdade de escolha nessa área ou, enquanto esperava o despertar das filhas para estes temas, tratou de transmitir noções de humanidade, de amor ao próximo, de partilha e de caridade, além de valorização da pessoa e da vida nas ações cotidianas, porque entendia que um rótulo de religião por si só é vazio de significados se não vier acompanhado de uma conduta condizente com os ensinamentos das mais diferentes e variadas igrejas ou manifestações de espiritualidade.

Na hora do almoço, chamou as meninas para sentarem-se à mesa e saborearem a refeição especial. A Ângela, filha do meio, reclamou: “Peixe de novo, pai?!” Daí, foi a vez da Lilica explicar: “Claro! Hoje é sexta-feira da Paixão”.

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