8:37A Curitiba que conheci

por José Maria Correia 
 
      Com o perdão do mestre Rubem Braga que abominava os memorialistas , como escrever sobre Curitiba sem a evocação da memória ?

      Afinal, são sessenta anos de andanças e perdições, caminhos e descaminhos. 

      As esquinas que me viram jogando burico e correndo inutilmente atrás dos balões, são as que escondem, solidárias até hoje, os ecos de minhas paixões adolescentes. 

      Esta a minha velha Curitiba, confidente única, a parceira do silêncio que comigo dividiu os roteiros juvenis e secretos de sentimentos ardentes e de tantas lágrimas vertidas na inocência e na ingenuidade. 

      Com que saudades Curitiba, vejo ainda as fotografias do imaginário, os lambaris translúcidos povoando todos os rios da minha infância, águas cristalinas terminando em pequenas quedas e cascatas, domingos de futebol, campos verdes, multidões em tardes douradas de encantamento. 

      Como esquecer as doces manhãs de guarda-pós brancos, alvos como marfim nos pátios do 19 de Dezembro, do Julia Wanderley e do Belmiro César?

      Quanta devoção pelas primeiras professoras, musas inatingíveis a criar sonhos febris e fantasias irrealizáveis até hoje.       

       E que tempos os do Colégio Estadual, do esporte, do teatro, da música e da literatura, tudo tão diferente de hoje, da linguagem virtual minimalista, das decorebas em cursinhos massificados e vestibulares do marketing e do comércio. 

      Ali, no Estadual, na antiga biblioteca com a cumplicidade dos mestres e eruditos, devorei “Os Subterrâneos da Liberdade” e toda a coleção de Jorge Amado, autor proscrito e no índex da ditadura militar que nos sufocava, mas não nos submetia. 

      E os roteiros underground: o voyeurismo de espiar as lindas  modelos posando nuas nos porões da Biblioteca Pública, os olhos grudados nos vitrôs semi-abertos e as mãos nervosas nos bolsos . 

      Levar as namoradas de surpresa na morgue da Universidade, e tirar proveito de imobilidade do terror da visão da morte para minutos de roubado erotismo. Invadir à noite o labirinto de rituais de iniciação das loja maçônicas, decifrar as inscrições e os símbolos proibidos e a prova suprema de coragem, pular o muro do cemitério municipal à meia-noite e o atravessar sozinho, de ponta a ponta, passo lento e sem pressa.     

Essas proezas  conferiam status, só não me perguntem quem criava tais desafios .

Depois, deixado o Estadual, e já na Faculdade de Direito na Federal, vieram outros enfrentamentos, riscos maiores e nem sempre percebidos .

A tomada da Reitoria, os muitos confrontos com a repressão, as passeatas que tomavam toda a Quinze, os comícios relâmpagos , as panfletagens e as pichações.

Quem “caía”, protestando contra o arbítrio, ficava fora uma longa temporada. Quem não “dançava”, resistia .
68 foi a geração do mimeógrafo, dos manifestos, do spray e dos cabelos longos contra a cavalaria, as bombas e as torturas.

Olhando para esse tempo, permaneço ainda um peregrino de todos os meus lugares santos , romeiro do antigo Bar do Pasquale, cantado em prosa e verso pelo Dante Mendoça, a praia curitibana de sábado no Passeio Público.
Socorrido sempre fui nas emergências da fome pelo bar Triângulo e comensal de jantares intermináveis do Bar Palácio .

E é na memória, já fragilizada, que procuro todos esses lugares.

Procuro eterna e inutilmente a minha taça  de morango com nata, esquecida em alguma mesa de domingo com meu pai no Bar Paraná da rua XV.

Procuro meu pai com um grito que não cala em meu coração e ecoa esses anos todos, cada vez mais dolorido.
Procuro minha juventude e a mim mesmo .
Procuro minha imagem caleidoscópica, multifacetada em cor néon, na luxúria criada pela Maria Japonesa no quarto dos espelhos .
No Joaquim Américo escuto os gritos a cada gol do Furacão rubro-negro, o verdadeiro , assim como escuto em meus sonhos de olhos abertos, as batidas de pé no chão do Cine Curitiba a cada vez que arrebentava a fita do Fu-Man-Chu ou do Sombra .
Cada vez que vou ao aeroporto ouço os metais do dancing Águas Belas abafando as sirenes das viaturas em mais uma das intermináveis batidas da ronda do delegado Paulo Lagos e, intuitivamente, olho em volta em busca do armário em que, menor de idade, me escondia. 
Na Barão do Rio Branco ainda dá para escutar na memória o Natinho em dueto com a Perla no porão do Presidente.
E lá no alto da Visconde, o Zé Roberto descrevendo os gols  que faria no dia seguinte, fugido da concentração e abrigado nas madrugadas da Caverna da Bruxa.
Na Comendador, o estourar nas panelas das pipocas do Orlando, no Gogó da Ema, metade milho, metade sal para matar de sede os clientes e faturar mais alto nos drinques de Claricol, Campari e Sant Remy.
E, depois, ao final de tantas noites, as histórias cheias de sabedoria e de metáforas do velhote Perly na mesa redonda do Jamil Snege, no Hotel Colonial .
O fato é que por onde andei, tratei de marcar como sacras todas essas referências antigas .
As portas cerradas dos botequins e restaurantes que nunca mais serão abertas e que escondem em seu interior vidros coloridos e opacos com os mais preciosos tesouros de minha infância: balas de ovos, balas de banana de Antonina, as figuras do Zequinha, copos de capilé, biscoitos Lucinda e Maria Mole.
 Só esta Curitiba foi minha companheira de desabafos etílicos em madrugadas brancas de névoa e neblina entre rubros vômitos de cuba-libre, gin e hi-fi.
Nas esquinas ficaram também as serenatas, o bumbo do Fernandinho Louco, o som do rock, Elvis, Beatles e Rolling Stones, o ronco dos escapes abertos das Kombis, dos Fuscas e dos Gordinis e da Harley do guarda Pignatari atrás da gurizada.
E uma a uma as lembranças foram substituindo as ilusões dos amores que seriam eternos, das conquistas definitivas e dos amigos que durariam para sempre, mas já se foram sem despedida.
Os rios e riachos cobertos de concreto urbano perderam a vida e o encanto. Os bosques foram engolidos pelo cimento, vidro e aço –  e as estrelas encobertas pelas luzes artificiais.
E os cinemas, ah os cinemas! –  esses são os insubstituíveis. O velho Luz com os cartazes de Sansão e Dalila pintados a mão; o Avenida com os épicos; as matinadas do Ópera e as matinês do Palácio, anunciadas pelos gongos solenes a impor respeito. Tudo era diferente: as bombonieres e até a luz do bastão de magnésio.
O Vitória, que foi nosso Chinese Theater, sempre tão louvado pelo E.G.C., impecável em sua inseparável capa de gabardine, ciceroneando Janet  Leigh e Karl Malden. O prédio deste ainda sobrevive, mas só com convenções menores e sem importância.
Dos velhos e grandes cinemas transformados em  bingos , igrejas mercenárias e estacionamentos decrépitos, tenho só fotos e cartazes desbotados como se fossem figurinhas coladas para sempre nas páginas do álbum de minha alma melancólica.
 E de tanta perda, salvo apenas as lembranças, já que procuro ainda e desesperadamente todos os meus mortos.
Procuro a todos esperando inutilmente que um dia renasçam ou “desmorram”, para me fazer companhia. Ou deverei partir eu, já que de cada um deles e desses lugares queridos sou muito precisado para reencontrar a minha cidade.
Mas procuro também os vivos e a coragem de gritar bem alto o anto eu os amo e que a vida seria impossível sem cada um dos que restaram e dos que vieram depois.
E esta procura termina sempre em exaustão naquele que um dia  fui .
E assim, já que o tempo não volta mesmo e as pessoas não se desencantam,fico com a alternativa única de que falava o poeta Rylke: viver apenas o que resta.
 Viver, tentando compreender tudo como um recomeço – e não um fim de linha .
E me convidar e ao companheiro de leitura para a interminável gravidez do mundo, onde todas as manhãs, apesar de tanta desesperança, há um radiante parto de luz  e um reencontro com amores, ilusões e seres. Estes, apesar de perdidos para sempre, ainda habitam em cada um de nós.
Pesam em nossos destinos, zumbem em nosso sangue, e de quando em quando emergem, repetindo-se em nosso gestos, textos e palavras. Parece até que os imitamos para nos aliviar e consolar. 
E prosseguir. Nada mais. Somente prosseguir.

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