por Zé da Silva
Libra
Na descendente da vida, descobriu o gargarejo. Não a primeira fila de um show do João Donato, mas aquele tradiconal, de apontar o nariz para o teto, abrir a boca, jogar uma quantidade de água e gargarejar, coisa que nunca tinha feito desde que nascera e nunca tinha se interessado em perguntar ou pesquisar nas barsas ou googles da vida. Gargarejou num dia em que olhou o espelho do banheiro e notou que, mais um pouco, o mofo acabaria com a existência dele do outro lado. Tinha colocado um tanto de água na boca para tirar a espuma da pasta dos dentes que acabara de escovar. Pensou em sentir o gosto na garganta. Mirou o teto, aparou o líquido na descida trancando a goela e fez. Jogou fora o líquido de uma vez, viu ele desaparecer no buraco da pia – e fez de novo, e de novo, e de novo, até sentir o prazer da água limpa borbulhando ao seu comando. Delirou ao mesmo tempo que o questionamento do por quê jamais tinha pensado nisso. Aí alguém bateu na porta. Ele respondeu com mais um gargarejo.Gostou também do som borbulante como resposta. Ficou ali dois dias seguidos. Tiveram que arrombar a porta. Estava caído. Desnutrição, diagnosticaram. O semblante, entretanto, era de felicidade santificada.