15:13Por amor

Publicado no site “Furacão.com” (www.furacao.com), em homenagem aos 86 anos do Clube Atlético Paranaense, completados hoje:

por Zé Beto

Sentado no piso frio da arquibancada, o estádio vazio numa tarde sem data, ele me olhou com a serenidade dos sábios e explicou numa frase o seu amor. “Ajudei a carregar tijolos, cimento e areia e trabalhei pesado para construir esta parte aqui”, disse. Olhei então para suas mãos, enormes, pele já enrugada pelo tempo, e me senti feliz por fazer parte. Estava diante do maior ídolo da história do Clube Atlético Paranaense, e fiquei imaginando quantas defesas elas tinham feito ao longo de uma história que se mistura com a do time como o ar que entra nos nossos pulmões. Naquele dia, na última conversa longa que tivemos, ele ainda longe da doença que lhe afetaria a memória, Alfredo Gottardi, o Caju, Majestade do Arco, não citou um jogo, um lance, um feito, nada. Revelou aquele gesto, como uma declaração a ser feita para tirar o clube de mais um dos vários momentos de crise. Como não guarda para sempre isso, mesmo porque sabia que ele, o irmão Alberto, também goleiro jamais vestiram outra camisa, mostrando que ela fazia – e faz parte da vida como uma outra pele fundamental para a sobrevivência. Alfredo Gottardi Jr., filho de Caju, quase o mata do coração ao vestir a camisa do adversário depois de também ser ídolo rubro-negro como zagueiro. Por castigo dos deuses, ficou mais no banco do que qualquer coisa lá do outro lado. Amor não tem explicação. Amor é. E por um time, ele pode ser este, como o de Caju e sua família, que nasceu com o próprio clube, em 1924, ou a de um forasteiro que aqui desembarcou pela primeira vez em 1977 arrastado pela profissão e teve como primeira missão ir àquela sagrada Baixada para colocar nas páginas de uma revista de nome Placar as diabruras de um ponta chamado Katinha.
Santista de origem paulistana e nordestina, pai abduzido pelo time de Pelé e Coutinho, demorei três anos para saber o que já sabia  – pois atleticano era desde o primeiro dia em terras paranaenses – e mais de três décadas se passaram, tempo suficiente para colocar no mundo três herdeiros atleticanos e paranaenses, nessa ordem.  Se revelação rubro-negra não explodira lá do fundo da alma, ela existia, pois havia a certeza de que jamais torceria para “o outro”.
O destino cumpria sua missão sagrada de fazer mais um repórter da sucursal da revista ser atleticano. E isso sem aquele ranço dos idiotas de plantão que confundem tudo e acham que um jornalista esportivo não pode ser torcedor. Antes, Carlos Maranhão, Helio Teixeira e Milton Ivan Heller, integravam esta pequena, mas privilegiada torcida que, pelo destino profissional, podia viver de dentro e relatar os dramas e alegrias proporcionados pelo que acontece por causa dela, a bola. Ao meu lado, nos 12 anos de sucursal, tive dois craques da fotografia e, claro, atleticanos: José Eugenio e Sérgio Sade.
O que poderia querer mais? Conhecer e conversar com quem não vi jogar, como Tocafundo, Cireno, Zinder Lins, um dos autores do hino que é a mais perfeita tradução da paixão, Sicupira, Nilson Borges… Ver nascer e desfilar pelos estádios o timaço de 1982/83 e ouvir da boca de Zico, depois da famosa partida em que o Atlético de Capitão, Washington e Assis massacrou o Flamengo fazendo 2 a 0 no primeiro tempo da semifinal do Campeonato Brasileiro, e ouvir o Galinho, craque maior de um time excepcional, revelar que tinham recuado no segundo tempo porque “vimos aquele car…. enorme vindo no nosso rabo e a gente tendo de espantar de qualquer jeito; assim mesmo, gritando sai, sai, sai”, mostrou, abanando com a mão direita algo poderoso querendo ferrar o Mengão.
E o que dizer do privilégio de estar naquele terreno sagrado do estádio Joaquim Américo e, lá de dentro, encostado no alambrado ao lado do antigo ginásio de esportes, receber a carga de emoção indescritível de ver baixar o Sobrenatural de Almeida no centroavante Ziquita para ele fazer os 4 gols e empatar nos últimos 13, 14, 15 minutos, não importa, aquele jogo que virou lenda, diante do Colorado?
A paixão por este time é tão exacerbada, no melhor sentido da palavra, que há pouco mais de um mês, fez o coração pulsar feliz ao ouvir uma história de um jogador que foi campeão brasileiro pelo outro time, mas que antes tinha vestido com orgulho a nossa, como goleiro. Disse Rafael Camarota, que revezou com outro excepcional goleiro, Roberto Costa, a posição de titular do timaço de 82: “Uma das minhas maiores frustrações foi nunca ter jogado um Atletiba dentro da velha Baixada”.
Tenho, sim, uma pedrinha guardada daquele templo demolido para a construção do novo estádio Joaquim Américo. Ganhei da jornalista Sonia Nassar, outra tradução perfeita do amor rubro-negro. A ela e ao Caju, aliás, dediquei uma revista especial que produzi para homenagear a conquista do título de Campeão Brasileiro de 2001 quando, por obra e graça do destino, a Placar voltou ser semanal (parou em 1990, depois de 20 anos de edições contínuas) e eu retornei ao posto como colaborador.
Sonia e Caju não puderam ver ao vivo a maior conquista, mas, estavam lá, mãos dadas, ajudando do Céu, na maravilhosa performance que soterrou a lacuna existente desde que o outro conquistou o título, 16 anos antes.
Eu comemoro meu time todos os dias. Sempre digo que sou atleticano até depois da morte, porque assim era antes de nascer – e sem saber. Para os que torcem o nariz ao futebol, aqueles idiotas da objetividade, os que falam em ópio do povo porque não sabem que a bola, como a Terra, é redonda, informo que a verdadeira nação, a irmandade, a fraternidade, não é essa onde se vê canalhas, ladrões e pulhas engravatados massacrando o povo depois de pedir votos com o olhar rútilo e a baba escorrendo pela possibilidade de enfiar no bolso o dinheiro fácil do suor da ninguenzada.
A verdadeira nação é a composta dos torcedores e dos jogadores que construíram ao longo dos anos, desde aquela fusão do América e do Internacional, em 1924, uma história de lealdade eterna, onde o que flui, porque é assim mesmo, o amor na sua mais sublime forma. Desde que, por motivos profissionais, deixei a editoria de esportes para jogar em outras áreas do jornalismo, me tornei o torcedor clássico, com cadeira cativa, comprada, de vestir a camisa, mesmo que tenha sempre detonado a idéia imbecil de se trocar as tradicionais listras horizontais, a da primeira camisa, pelas verticais, neste surto de marketing de cartolas que não respeitam a história. Sofro com os times medíocres dos últimos dois anos. Também aplaudo quando o juiz dá cartão amarelo para o adversário, prova de que o prazer de ver a bola rolar redonda não aparece. Mas sempre estou lá, dando força, no meio de meus irmãos, todos nós anônimos, esperando a hora em que vai acontecer o que merecemos, o que o time merece.
Tenho uma camisa do Furacão de 1949. Comprei assim que soube da existência. Ostento-a com o orgulho de quem sabe que ela resume tudo. Às vezes, nas cadeiras do novo estádio, olho para o canto do estádio onde naquela tarde de um dia da vida estive com Caju. Olho em volta, vejo principalmente as crianças que um dia saberão dele e dos outros, e sei que suas mãos não construíram apenas aquele canto do antigo Joaquim Américo.

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