6:19E-mail para Manoel

por Rogério Pereira, publicado no site Vida Breve (http://vidabreve.com/)

Resumindo: foi a guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas, ambos filhos da puta.
Manoel Carlos Karam, em Jornal da guerra contra os taedos

A escada ainda está lá. Imóvel a rolar. Não se esqueça: é rolante. Sei que o trocadilho é infame, mas você entenderá. Subi e desci algumas vezes os degraus, sempre a olhar para baixo. Sim, as mulheres de bundas bem torneadas — aquelas que nós olhávamos de atravessado para, em seguida, continuar a conversa fingindo indiferença absoluta — seguem por ali. Lépidas a rebolar. Percorri a escada da maneira como você me ensinou: um passo depois do outro. Em seguida, depositei o cotovelo no balcão e pedi um café. Lembrei de que preciso levar o Clap para a revisão dos 100 mil quilômetros. Ainda guardo o boneco do Pinóquio no porta-malas.

Estive lá um dia depois do reencontro com K. Ela foi ao meu bar. Não é um bar, mas todo mundo diz que virei botequeiro. Não sabem que estou treinando para desaparecer. É, sou um aprendiz de Doutor Pasavento. Qualquer hora te empresto. Imperdível. Então, K. foi ao meu café, que não é um bar, mas é também um restaurante, e conversamos longamente sobre você. Conversa boa, gostosa. Nas entrelinhas, tentávamos negar algo que fica sempre nas ranhuras do inexplicável. No fim de semana, veja só você, fui a casa da minha mãe e ela me disse que está com um problema na mão. Disse-lhe que procurasse um médico. Ela soltou: “Eles (os médicos) mataram a tua irmã. Acho que foram eles”. E calou-se. Em 31 de janeiro, fez oito anos que a filha da minha mãe desapareceu numa noite sombria. Então, nesta coisa de morte, a gente vive procurando algo, sem saber muito bem o quê?

A K. me contou que acabara de repassar toda a tua biblioteca para uma casa de leitura num parque de C., esta cidade que esconde vampiros nos telhados. Achei que ela doaria para alguma biblioteca de Relva ou de Alhures do Sul. Enfim, optou por deixar os livros aqui em C. — nosso imenso túmulo. Eu disse-lhe que gostaria de ter comprado a tua biblioteca, mas na época não tive coragem de procurá-la para tratar de um assunto tão pouco literário num momento de sombras e escuridão. Confesso: sempre vou à casa de leitura que leva o teu nome e roubo um livro. Já levei 631. Pelos meus cálculos, em 2.381 “visitas”, terei completado a missão. Na semana passada, levei o A vida modo de usar, do Perec. Estou atrás do Pinóquio: um livro paralelo, do Giorgio Manganelli. Há bem pouco tempo, no aeroporto, encontrei este livro numa destas livrarias que parecem qualquer coisa menos livraria. Lembrei-me de você. Quando estendi a mão em direção à prateleira, um senhor barbudo e de cabelo comprido pegou-o, deu-me as costas e soltou uma gargalhada feliz. Coisa esquisita.

Esqueci de te contar: o meu bar, que não é bar, não se chama About. Tentei colocar este nome, mas ninguém entenderia. Nesta coisa de negócio é preciso tomar uns cuidados estranhos. Ele tem janelas. Preferia que não tivesse. Tem uma que permanece sempre fechada. Eu a danifiquei de propósito. Agora, é uma janela morta, cerrada. Quando minha sócia não está, coloco no último volume AAAA, a música de 20 minutos. E finjo que danço. Não danço. Nunca danço. Não sei dançar, não sei nadar, não sei ver cor, não sei voar. Sou quase um animal doméstico. Enfim, lá no meu bar, que não é bar, é todo mundo artista: a garçonete canta, a gerente canta, o outro R. é malandro, o que não deixa de ser um tipo de arte. Enfim, está cheio de artista lá no bar que não se chama About e tem janelas. Eu não sou artista. Meus inimigos dizem que sou autista. Acho que têm razão. Garantem que não entendem o que eu falo. Ingênuos: não sabem que vivo tentando me livrar das palavras que me sufocam a goela. Daí, o grasnar sôfrego.

Muito estranho tudo isso. E a vida, coisa simples, eh? E a morte, então. Tem gente que diz que eu escrevo sempre sobre as mesmas coisas. Também acho. Talvez seja culpa do autismo. Que sempre falo da morte. É claro, penso nela (na desgracida; minha mãe fala desgracida; eu também falo; às vezes, penso que minha mãe tem parte com o Guimarães Rosa; parte com o capeta, ela não tem não; vive na igreja; sabe, ela me disse que quer viver até os 100 anos; mas com a mesma vitalidade de agora; minha mãe é engraçada, quando não está chorando) todo dia. Só os bobo-alegres não pensam na morte. E os que já morreram (desculpa a bestial ironia). Mas eu estava te falando da visita da K. Depois que eu contei-lhe da minha intenção de comprar a tua biblioteca (agora, a intenção virou roubo ou furto, sei lá; nunca soube muito bem a diferença entre ambos), ela voltou ao About, que não se chama About, e me deu de presente um exemplar do Cortázar. Não é um livro, mas um conto transformado em livro. Lembra de A casa tomada? Impossível esquecer. Lembra que eu disse que iria escrever um ensaio comparando este conto ao teu romance? Melhor esquecer. Nunca escrevi. É um exemplar do conto num livro comprido, com a planta da casa. A história vai se desenvolvendo pelos cômodos, o leitor acompanha a tomada da casa de uma maneira muito, digamos, arquitetônica. Mas isso não tem importância. O importante é que a K. me deu o livro de presente. Portanto, é um livro a menos para eu roubar lá na casa de leitura. Na primeira página, você assinou o teu nome. Aí, senti algo estranho. Eu também escrevo o meu nome nos livros lidos, com a data da leitura. Deixo as minhas pegadas a lápis. Dizem que o tempo apaga o grafite. Pouco importa, logo eu e o grafite não estaremos mais aqui. Você escreveu a caneta. A letra é meio torta. Então, peguei um livro que você autografou. Não se preocupe: não o venderei no sebo. Mas conto isso para dizer que ao ver a tua letra impressa no livro, lembrei-me do dia em que apaguei o teu telefone da agenda do meu celular e o teu e-mail dos meus contatos. Foi o mais estranho sentimento de perda que tive na vida. Já notou como é estranho apagar as pessoas? Quando criança, nunca apagava o quadro negro. A professora mandava e eu me recusava. Tinha medo de apagar a minha caligrafia. Dava um trabalho danado fazer aquela letra redondinha, para ela morrer num zás do apagador. Às vezes, penso que Deus é um enorme apagador.

Quando a K. se despediu, chovia. Chovia muito. Ofereci-lhe uma carona. Ela começou a chorar ao ver que ainda tenho o velho Clap que comprei de você. Só tirei o adesivo do teu time de futebol do vidro lateral da terceira porta de cima para baixo. De resto, está irretocável. E ando muito com ele. Vou a Relva de vez em quando e percorro a avenida Imperador ao som do Quarteto nº 15 de Verganz. Levo meus dois filhos. Eles adoram o Clap. O povo olha com uns olhos cobiçosos, de inveja pura. Eu acelero, corto a cidade e volto para C., onde chove todo dia. E o povo gosta de chorar. A K. tem as razões, é claro. Levei-a para casa, agradeci-lhe o presente mais uma vez. Antes de descer do carro, disse-me algo que não compreendi muito bem devido ao barulho da chuva no capô. Só consegui decifrar a palavra “saudade” a infiltrar-se pela escuridão antes de sentar-se ao meu lado no velho Clap.

P.S. Dizem que os e-mails se perdem no ciberespaço. E nós?

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