23:05Um dia após a morte de Elis

por Zeca Corrêa Leite 

Tudo amanheceu mais silencioso hoje, com jeito de reverência, com uma dor entalada na voz, janelas fechadas, cortinas pretas suspensas em portas vazias de casas pálidas, magras, mudas.
Os rádios estão desligados. No ar se ouvem cantigas fininhas,coisas nunca cantadas em palco, nunca ficadas em disco, nunca nada.
As conversas estão veladas, tudo assim como se alguém dormissee fosse necessário falar baixinho.
As pessoas estão falando de Elis, do que viram pela televisão, do que viram pelos palcos, das fantasias que criaram em torno,das notícias de jornais, do soluço dos botecos, da solidão musical.
Hoje não tem aquele burburinho de ontem, aquele apressado desmentir, os lábios  – todos os lábios – dizendo que não era nada disso, tinha sido engano, notícia desencontrada, um boato absurdo.
Ninguém vai correr atrás de telefones, rádios, tevês, buscar os amigos, derramar as primeiras lágrimas
– as mais surpreendidas e indefesas, talvez – apalpar o espaço que ficou vazio e ir em busca de ar que começa a faltar de hora para outra.
Está este cansaço hoje, o conformismo vai tomando conta.
A vida acha de fazer isso, essa brincadeira séria, essa mentira verdadeira. 

Mas tudo tem doído tanto que nem dá para dizer como é o dia.
Só nos perguntamos como foi que passamos de ontem para hoje.
E esperamos cansados o amanhã que vai chegar.
Nesta cidade de Curitiba os amigos encontram-se absortos, ainda, se reunindo em grupinhos, comentando vagamente, chorando de repente, cantarolando qualquer coisa que lembre essa mulher, tropeçando em pessoas que também não estão nem aí,
nem sabendo da mulher que morreu, nem nunca tendo ouvido nada ou simplesmente descartando o acontecimento
como coisa que aconteceu. Mas é preciso que se diga que a paisagem está mudada que há um verniz cobrindo tudo, que debaixo do brilho do dia tem uma coisa empanada, parece véu, “parece que vai chover” como diz Djavan numa música linda dele.
Aquela menina que deitou no chão e chorou quando ouviu Cauby Peixoto e deixou a vassoura de lado e não varreu o pó da sala e era ouvinte da Rádio Nacional e gostava demais de Ângela Maria e era Elisinha e cantava na privada e tinha vergonha das pessoas e jorrou sangue pelo nariz e não cantou na primeira vez que foi na rádio e apanhou da mãe e era sonhadora na vida difícil do bairro operário de Porto Alegre daqueles anos de mil novecentos e cinqüenta,
pois aquela menina vai cantar junto de Dalva, do Noel, do Chico Alves, da Carmen Miranda, da Maísa, do Pixinguinha, do Jacob, do Agostinho, do Vassourinha, do Cartola, da Tuca, da Silvinha, do Mário Reis, do  Vinícius.
Sei lá por onde andam eles, mas devem estar num lugar que tem palco e tem luzes e ribaltas e cores e brilhos e sombras e uma terra caipira e uma viola cantadeira e um riozinho manso em torno e uma árvore boa.
Essa gente louca na vida, de coração partido, de emoções suicidas deve estar pela platéia aplaudindo freneticamente, assoviando, rindo, acordando-os de vez em quando em sonhos absurdos, em inspirações bonitas.
Elis Regina está lá chegando para cantar junto.
Ela está lá e não sei como vê o nosso dia, se é que o dia ainda é dia, se é verdade que amanheceu.

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