4:01Trânsito, acidentes, leis, fiscalização e a impunidade como regra

por Gilberto Foltran

Essa é  uma matéria que não sai de pauta em vista do suceder de acidentes, muitos com resultados nefastos e sempre por irresponsabilidade de alguém  – normalmente do motorista, máxime aqueles situados na faixa dos 18 aos 25/30 anos.

E a cada vez que temos um acidente de ampla repercussão os especialistas de plantão defendem a mudança da legislação para torná-la mais gravosa, na esperança de que a Lei mais dura evite o inevitável.

Ledo engano!

Não é a Lei mais drástica que impede a ocorrência das ilicitudes, mas, sim, a sua não aplicação.

Tornar a Lei mais rigorosa se justifica a partir do momento em que aplicada, não se percebe o seu efeito pedagógico.

Aliás, sequer podemos afirmar, com certeza, se a Lei vigente precisa ou não ser mais rigorosa, em vista da precariedade que se vê na fiscalização e o baixíssimo percentual de motoristas que são fiscalizados, nas vias urbanas e nas rodovias, comparando-se com a grande quantidade de infrações que constatamos e que não são punidas. A impunidade, infelizmente, é a regra.

 O aparato fiscalizatório dos governos, em todos os seus níveis e em praticamente todas as áreas, é muito precário e os exemplos grassam pelo País em todas as direções. Para que não percamos o foco no problema, vamos ficar adstritos à fiscalização de trânsito.

Indiscutivelmente o Código de Trânsito Brasileiro é avançado e permite que o nosso sistema seja equiparado àqueles de paises mais desenvolvidos. E por que não é?

Para explicar a questão de forma mais pedagógica, vamos nos valer do famoso TRIÂNGULO DO TRÂNSITO, composto de um lado pela EDUCAÇÃO, por outro, pela FISCALIZAÇÃO e o terceiro, pela ENGENHARIA.

O condição de equilíbrio desse triângulo vai indicar, na mesma proporção, o equilíbrio no trânsito.

Assim, boas estradas com boa sinalização, aliados com um bom nível de educação no trânsito, garantidos por uma boa fiscalização, vão gerar um sistema de trânsito seguro e eficiente.

Na medida em que cada lado se desequilibra, deverá ocorrer, necessariamente, a compensação dos lados remanescentes – isto é – se uma estrada se apresenta mal sinalizada (engenharia), a segurança dessa via ficará dependente de um bom comportamento  dos motoristas (educação) e de maior aporte de recursos para coibir ações negativas dos condutores (fiscalização).

E aqui se evidenciam os problemas.

Temos visto que grande parte dos técnicos e das autoridades, defenderem que a solução do problema está na educação dos motoristas, ou seja, o motorista educado  é capaz de contribuir de forma significativa para a segurança e defendem também o endurecimento das normas legais.

Não deixa de ser ao mesmo tempo, uma verdade e uma utopia! O equívoco está em pensar que a educação pode ser dissociada da fiscalização. Não pode!

Há que se separar os motoristas. Aqueles que são educados em qualquer situação, que se constituem em maioria, daqueles que são educados até o momento em que a educação não colide com algum interesse (por exemplo, aqueles que uma vez atrasados para um evento, não se constrangem em avançar ao sinal vermelho, exceder a velocidade, etc….) E ainda, daqueles que são deseducados por natureza, cuja ignorância não permite enxergar o trânsito como um sistema complexo, que envolve toda a sociedade. – são aqueles contumazes em ingerir bebidas alcoólicas antes de dirigir; que conduzem o veículo em excesso de velocidade pelo simples espírito de emulação e pior, que apresentam a empáfia e a arrogância de se colocar acima das Leis, ou simplesmente, desconhecem qualquer princípio de convivência humana, só enxergando aquilo que lhes convém.

Qualquer lição aos primeiros é desnecessária.

Aos outros é utópico o pensamento de que possam se emendar se participarem de algum evento voltado à educação para o trânsito.

 Esses condutores, cuja educação é inexistente ou que se estende apenas até o limite da  sua conveniência, o remédio não é outro que não seja o de uma rigorosa e eficiente fiscalização, de forma que, pela coerção, se enquadrem no sistema sem compromete-lo.

É aqui que se localiza a pedra angular do equilíbrio do sistema de trânsito.  De nada adianta termos leis mais duras se não houver quem obrigue o seu cumprimento. As ações fiscalizatórias são insuficientes, muito esparsas e os poucos condutores flagrados no cometimento de infrações de um modo geral e gravíssimas ou de crimes de trânsito, em particular, não recebem a penalização merecida ou pior, não raro, no caso de crimes de trânsito, se apresentam com ferrenhos defensores para os livrar das “garras da justiça”. E mais, pela pequena estrutura coercitiva disponível, há uma natural sobrecarga de serviço, tanto no nível policial, como no judiciário, contribuindo para que grande parte das crimes praticados ao volante se tornem impuníveis pela prescrição. Não devemos esquecer a infinidade de recursos que a nossa legislação permite, que conspira para que os processos se arrastem por anos a fio.

Ou isso muda, ou vamos amargar por muitos anos as absurdas mortes no trânsito e muito pior, conviver com a terrível cultura de que o acidente de trânsito é uma fatalidade à qual estamos sujeitos.

Não é. O acidente de qualquer natureza e o de trânsito não se constitui em exceção, são evitáveis. Basta que haja responsabilidade.

Todos somos responsáveis, por dever, por convicção ou então, que o sejamos pela  coerção.

Todos, sociedade e governo, por dever, pois, os nossos direitos se estendem até onde começa o direito de outros e quando ousamos ultrapassar esses limites devemos sofrer a interferência do Estado de forma que os limites traçados pela Lei sejam obedecidos.

A sociedade, por convicção, no sentido de disseminar o entendimento que todos têm o direito a um trânsito seguro.

Os recalcitrantes, por coerção, de forma que aprendam a respeitar os direitos de outrem sob a mão forte da Lei, pois, se por ignorância, empáfia ou arrogância entendem a Lei como “ feita para os outros”, que lhes seja ensinado que num estado democrático de direito, a ninguém é dado ter mais direitos ou menos obrigações, muito menos aqueles que possuem uma formação aprimorada de discernimento.

A discussão que se levantou com os últimos acontecimentos deveriam ser aproveitados pelo Legislador e pelas autoridades, para estimular as práticas de prevenção, de forma a conter os excessos, punindo os responsáveis, com o total apoio de toda a sociedade, fato difícil de ocorrer, uma vez que a fiscalização de trânsito não é uma ação que tenha, comumente, a simpatia das autoridades e da sociedade motorizada, sob pena de que os esforços daqueles poucos que se insurgem contra o atual estado de coisas percam o ânimo e se considerem como verdadeiros “Dom Quixotes”  que lutam contra os moinhos de vento armado de lanças. Com a diferença de que os monstros do trânsito são reais, ao contrário daqueles imaginados pelo personagem do romance de Miguel de Cervantes.

O inimigo é  poderoso e não quer perder o seu status de infrator impune.

Nesse sentido, a arma mais eficaz é ainda a prevenção, ou seja, evitar que o desastre se consume e isso equivale a dizer, atuar com antecedência – sanar a infração antes que ela gere uma conseqüência funesta. E isso só é possível com a ação de fiscalização.

É necessária a ação dos governos no sentido de que os órgãos encarregados do trânsito sejam dotados de meios materiais e humanos de forma a cumprirem o seu papel no sistema de trânsito. Se o governo fingir que fiscaliza, os motoristas fingem que são educados e na primeira oportunidade, o pior acontece e todos correm, o governo para alegar que o motorista precisa ser educado e a sociedade buscando leis mais duras para conter os desastres. Todos brigam e ninguém tem razão.

Os exemplos estão sendo expostos todos os dias – os bons e os maus.

Os bons, onde vemos que a instalação de medidores de velocidade em vias conflagradas, foi um remédio salutar, onde muitas vidas foram poupadas, e os maus, onde a autoridade, por falta de conhecimento, ingerência política ou até má-fé, retiram os medidores sob o inqualificável argumento de que se constituem como “indústria da multa”.

Mas, os radares não são a solução para um problema ainda mais grave do que a velocidade – a embriaguez ao volante. Não é necessário discorrer sobre as conseqüências dessa insensatez, pois muito já se falou a respeito.

A embriaguez só pode ser constatada com a ação direta de polícia e não se vê com a freqüência esperada as “blitz” de trânsito. Há quanto tempo você foi parado pela última vez?

Dissemos que a fiscalização é insuficiente e muito esparsa, mas, mesmo assim, vemos que é significativa a proporção de motoristas bêbados em relação aos abordados. Isso é muito grave, pois se a fiscalização fosse realmente mais rigorosa, constataríamos que dirigir embriagado é uma infração muito mais comum do que se imagina.

Surge aqui um outro e não menos grave problema – os embriagados, acabam por escapar ilesos, ante uma questão jurídica/constitucional – “ninguém é obrigado produzir prova contra si mesmo”. E ante a negativa do condutor em se submeter ao bafômetro ou ceder amostra de sangue, o Juiz pode deixar de aplicar a pena por falta do laudo comprobatório e todo o esforço vai por terra. A mudança da Lei nesse aspecto seria salutar, mas, tem que ser no sentido de que no caso de embriaguez o indivíduo seja obrigado a comprovar que não está bêbado, pois ao negar a infração e não permitir a coleta de sangue para o exame, deveria se sujeitar à inversão do ônus da prova. Sem que a lei seja alterada, o Juiz nada pode fazer, pois a ele cabe tão somente aplicar a lei aprovada pelo Legislador.

 Se isso não for mudado, tudo vai continuar como dantes – IMPUNIDADE e mais mortes a serem lamentadas!

Isso tudo, sem que se perca de vista que são as infrações tidas como leves ou médias, que acontecem no cotidiano das cidades e não punidas, como falta de cinto, falar ao celular enquanto dirigindo, estacionar em fila dupla ou em locais proibidos, etc… além da total falta de fiscalização no que tange aos equipamentos obrigatórios, habilitação, licenciamento do veículo, ultrapassagem em locais proibidos, etc.., que são o nascedouro de uma mentalidade equivocada e altamente negativa por parte do motorista, consubstanciada na certeza de que as ilicitudes praticadas ao volante são toleradas pelas autoridades e até aceitas socialmente. E pior, contamina a própria educação destinada às crianças, cujo ensinamento nas escolas, com o esforço de professores e de outros profissionais abnegados, é posto ao chão pelo comportamento negativo (e não punido) dos pais ao volante do veículo.

Evidentemente que o assunto não se esgota nessas pequenas reminiscências, ao contrário, serve apenas para provocar a continuidade das discussões e levar a questão para as esferas políticas e governamentais, de forma que se adotem, efetivamente, medidas voltadas à prevenção e cada vez menos precisemos chorar a perda de vidas nessa verdadeira guerra que se constitui o trânsito brasileiro.

Sugere-se que os Estados e Municípios sejam obrigados a destinar parte do orçamento  à fiscalização de trânsito, de forma que os órgãos encarregados possam adquirir os meios necessários para implementar a fiscalização eletrônica e permitir o aumento gradativo dos  contingentes de agentes fiscalizadores, exatamente porque parte das infrações só podem ser constatadas pelo agente.

Além disso, propõe-se a alteração  da legislação de forma que a punição dos crimes de trânsito não esbarrem na má técnica legislativa e por isso, passem incólumes nas Sentenças prolatadas pelos nossos Magistrados.

A melhor Lei é aquela que é aplicada e cumprida.

*Gilberto Foltran é foi Comandante Geral da Polícia Militar do Paraná e  Diretor de Trânsito de Curitiba

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