7:53Recado ao Rubem Braga

por Thea Tavares

Gostaria de dividir essa com o saudoso Rubem Braga. Aconteceu não faz muito tempo. Mas tornou a frequentar a lembrança porque a professora de Português da minha filha, com gosto literário apurado e impecável, resolveu fazer um trabalho em sala de aula sobre a crônica dele intitulada “Recado ao Senhor 903”. Quem ainda não leu o texto, largue tudo agora e vá fazê-lo. É imperativo! Só depois disso é que estará autorizado a matar sua curiosidade a respeito do fato que vou narrar.
http://oficinaleiturasescritasccsp.blogspot.com/2008/11/recado-ao-senhor-903-rubem-braga.html
Chegando uma noite em casa, depois de uma viagem de trabalho, encontrei minha caixa no escaninho de correio do condomínio regurgitando correspondências. De contas a pagar a publicações e propagandas diversas, havia de tudo um pouco ali. No meio daquele calhamaço, estava também um envelope branco e alaranjado da Copel… já rasgado, vazio e com uma mensagem escrita à mão, direcionada para a minha pessoa. Pessoa, não. Na verdade, para o número do meu apartamento: 13, escolhido a dedo para combinar com as preferências político-partidárias que digito a cada dois anos na urna eletrônica. Nem me incomodei muito com isso, visto que também não conheço os vizinhos pelo nome, exceto o síndico, que vem registrado no boleto da mensalidade e cuja mãe eu jamais vi, apenas direciono meu pensamento à pobre mulher toda vez que a mordida do condomínio vem salgada. Quanto aos demais, somente lhes dedico, de forma intercalada, ‘bom dia’, ‘boa tarde’ e ‘boa noite’. Economizo até nos ‘tudo bem?’, ‘como vai?’ ‘dá licença?’ e ‘tchau e bênção’.
O departamento de marketing da companhia de energia elétrica do Paraná seria incapaz de imaginar aquela serventia para o reaproveitamento dos seus envelopes de cobrança, mas não se pode negar o espírito ecológico de quem achou um jeito de ‘reciclar’ o timbrado da Copel. E digo mais: re-reaproveitar, pois o usou por duas vezes! O número do meu apartamento aparecia como segunda opção da vizinha remetente. Ela já havia pago o mico de enviar o mesmo comunicado a outro apartamento, pois o seu número estava riscado um tanto acima do meu.
O recado dizia o seguinte: “Sou a vizinha do 23. Enfermeira, cumpro plantões médicos e por isso preciso repousar e dormir bem nas noites que passo em casa. Ultimamente, isso se tornou uma tarefa difícil em virtude dos barulhos que vêm do interior de seu apartamento depois do horário de silêncio que foi estipulado em comum acordo entre todos os condôminos, das 22h às 7h. O que ouço são pancadas insistentes no assoalho, que ecoam nas paredes, gritos e frenético ranger de cama que vem do quarto do casal. Creio que não seja apropriado e nem intencional de sua parte dividir esses momentos afetivos com os demais moradores do prédio e muito menos nos interessa servir de plateia involuntária de tais espetáculos. Por isso, peço encarecidamente que adote outros procedimentos e me deixe descansar em paz. Coloco-me à disposição para ajudar a pagar o conserto da mobília ou reformá-la para que não acorde mais ninguém, caso isso seja realmente necessário. Fulana de tal, a vizinha do 23”.
Entre indignada e me divertindo com a situação, driblei todo o cansaço da viagem e resolvi responder de pronto. Como a vizinha do 23 havia escrito sua acusação nos dois lados do envelope, fiz uso do envoltório da minha própria conta de luz para redigir a resposta. Também daquele de telefone fixo, celular, internet e TV a cabo, retratos da parafernália do isolamento urbano.
“Cara vizinha do 23. Aqui, é a moradora do apartamento 13. Aquela que sempre coloca santinhos de candidatos do PT na sua caixa de correio durante as campanhas eleitorais. Talvez o único método invasivo de privacidade que eu já tenha atentado contra a senhora. Mas é com profundo pesar que venho lhe dizer que, infelizmente, sem sombra de quaisquer dúvidas e por força do meu último fio de esperança, não sou a protagonista das sessões calorosas e barulhentas que estão lhe tirando o sono. Fico muito entristecida em admitir que não a perturbo, quando tudo o que gostaria de dizer fosse orgulhosamente o contrário. Ao acordar, percebo que mal saí do lugar em que caí quando me deitei e isso está provocando um outro tipo de problema no leito, que é o afundamento do colchão. O que, como é de se imaginar, por ser tão silencioso não responderia pelos fatos magnificamente descritos pela senhora.
Talvez eu ronque, mas não sei lhe dizer a que grau na escala Richter, visto que não fico acordada para aferir e acredito mesmo que não seja suficientemente alto para lhe perturbar. Como meu apartamento fica embaixo do seu e o chão é de concreto, seria mais fácil eu ouvir a senhora que vice-versa. Mas lhe prometo que, se essa situação se alterar – e vou dedicar-me profundamente à tal missão, encorajada por sua narrativa tentadora -, serei a pessoa mais feliz do mundo e saltitantemente alegre virei lhe comunicar esse furo de reportagem. Não me coloco à sua inteira disposição para auxiliá-la na pesquisa de campo, junto às demais portas residenciais do nosso prédio, no intuito de chegar ao culpado de fato, mas também não prometo que não o farei sozinha e sorrateiramente, até para matar a curiosidade e formatar uma imagem que se associe ao som. No entanto, aqui vai uma dica: percebo que há ainda um espaço mínimo entre o meu número de apartamento e as primeiras linhas de sua queixa e, por isso, sugiro que preencha nele o número do destinatário que corresponde com exatidão às suas reclamações. Esse tem de ser um tiro certeiro. E, por favor, não se esqueça de riscar o meu número também, como fez no caso da vizinha que me antecedeu.
Não lhe nego a razão, pois não saberia como proceder no seu lugar. Ao menos, pudemos compartilhar um pouco da nossa miserável vida privada, urbana e moderna, permeada de pequenos juízos de valor, que nos blindam do mundo lá fora e se chocam quando encaram a vida primitiva que berra nos recônditos do nosso prédio. Seja por não concordar com a folia, seja por não poder aderir a ela. Se não voltarmos mais a explanar sobre nossas opiniões, pessoalmente ou por meio desse meio de comunicação inusitado – os envelopes de faturas -, ficam aqui o meu bom dia, boa tarde e boa noite”.
Rubem Braga se decepcionaria em perceber o quanto não cabem mais nos dias atuais a resposta e a sabedoria do morador do 1003. No máximo, essa indelicada e espinafrante correspondência retrata o resto de humanidade que ainda nos nutre. Salvo raríssimas exceções, mas nenhuma delas habita este prédio.

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