9:06Ernesto Perly – a partida do boêmio

por José Maria Correia

Já contei para os leitores deste blog que o Ernesto Perly, o último boêmio de um período saudoso, tinha deixado o Rio de Janeiro e voltado para Curitiba no início dos anos 80, onde conquistou uma legião de adeptos e seguidores nas nossas frias e enevoadas noites.
E para quem queria entender os motivos que fizeram o velhote deixar a Zona Sul e a animada orla carioca, a resposta vinha embutida em uma longa narrativa repleta de casos que conduzia até a decadência da época de ouro da Cidade Maravilhosa, que já não mais era reconhecida e apreciada pelo nosso antigo bon vivant.
Meu filho, dizia o velho com aquela ênfase que lhe era peculiar, “O Rio já não é mais o mesmo desde que fecharam os cassinos e a capital mudou para Brasília”.
Acabou o cinema nacional, os grande estúdios, os maiores shows e montagens teatrais, os artistas deixaram de sair, de freqüentar, desapareceram ou mudaram para São Paulo, a criminalidade tomou conta da cidade e os ambientes boêmios de classe não existem mais.
E se o Rio de Janeiro pedia chope ou scotch com gelo na década de 50 quando nosso personagem fazia a ronda noturna na companhia de Anselmo Duarte, Jorge Dória e Alberto Ruschel, Curitiba generosamente passaria a servir nas madrugadas intermináveis café e chá com torradas, estimulantes já mais apropriados aos quase oitenta anos do Perly.
E foi com o seu jeito especial de freqüentador da boêmia que, ao regressar, o Perly tratou de descobrir urgente um local que o abrigasse adequadamente, noite após noite, sempre com uma seleta roda de convidados à sua mesa.
Primeiro andou tentando o recém inaugurado coffe shop do Hotel Iguaçu, na rua Dr. Muricy, acompanhado apenas do Luiz Gavazzoni, então casado com uma das netas de Moysés Lupion, a quem o Perly servira fielmente como amigo, confidente e acompanhante  voluntário nos dois governos em seus intervalos da vida no Rio.
Bem, o café noturno do Hotel Iguaçu, hoje Bourbon, embora bem concebido, não passou no teste inicial e foi reprovado ante as exigências rigorosíssimas do Perly: qualidade do serviço, empatia com os garçons e cozinheiros e, principalmente, exigência máxima, horário para fechar nunca antes de o sol raiar.
E assim, em função das muitas exigências de um profissa da noite, o único escolhido foi o café do Hotel Colonial, da Comendador Araújo, hoje Deville, onde o Perly passou a exercer a dupla função de Presidente da confraria por ele fundada e dirigida com mão de ferro e habitué de todas as noites.
Também já contei das muitas noites encantadas do Colonial vividas por privilegiados como Jamil Snege, Álvaro Junqueira, Haroldo Murá, Roberto Requião (na época era chamado de Mello), Almir Feijó, Ali Chaim , Zanoni , Emilio Mauro, Açucareiro , Janguinho , Portugal, Mazzinha, o Lacerda, mais as meninas da vizinha boite Gogó da Ema, sempre em busca de uma revigorante canja ou um michê de fim de noite, e tantos outros habitués entre cafténs, gigolôs, jornalistas, publicitários e intelectuais  .
 
Mas foi ouvindo o site digital das entrevistas do Aramis Millarch e a entrevista com a dupla Anselmo Duarte e Ernesto Perly que me lembrei do rumoroso affair do nosso homem da noite com a Ava Gardner, em 1954.
Este caso fazia a delícia dos ouvintes nas madrugadas do Colonial e somente em altas horas, e depois de reiterados pedidos, é que o Perly assentia em repetir a historia para um neófito freqüentador que jamais havia sabido do episódio.
Ava Gardner, considerada a mais espetacular atriz de Hollywood daquela época, havia chegado ao Rio da Janeiro em 1954 trazida pela Paramount para divulgar seu filme mais recente, “A condessa descalça”.Estava no esplendor dos seus 34 anos e em sua homenagem Jean Cocteau havia dito que se tratava do “mais belo animal do universo”.
O Rio de Janeiro estava literalmente aos pés da deusa do cinema .
Mas Ava era temperamental e protagonizou um verdadeiro barraco no famoso Hotel Glória – ou porque bebeu demais ou porque não gostou da suíte que recebeu ou pelos dois motivos.
O fato é que exigiu mudar para o suntuoso Copacabana Palace, onde o playboy  Jorginho Guinle costumava receber as estrelas do cinema americano .
E, segundo o próprio Perly, foi lá que Ava após um de seus muitos pileques meteu-se com o crooner da orquestra do Copinha de nome Carlos Augusto.
Nessa altura da narrativa a atenção dos ouvintes aumentava e o Perly então emendava de primeira:
“Meu filho, o crooner era um brocha, falhou e foi expulso da suíte da Ava. Ela estava para o crime todas as noites, desceu para o bar, pediu mais um Martini, não deu bola para o Anselmo Duarte, que podia ser mais bem apanhado, mas não tinha o meu charme , olhou para mim e disse “ Hey you , James Cagney , come in”.
“Ela estava bem alta e me achou muito parecido com o ator famoso de Baby Face e de tantos outros filmes. Eu tinha 44 anos e realmente podia passar pelo astro, embora fosse mais alto, mas também dançava quase tão bem como ele.
“Fomos para suíte dela e transamos a noite toda até o amanhecer”.
Nesse ponto o Perly era interrompido pelas típicas perguntas curitibanas. “E a Ava como era na cama? Teve oral? E por trás?” Esses detalhes culturais tão preciosos e dos quais nossos conterrâneos de província não abdicam de conhecer em hipótese alguma.
O Perly respondia ao interlocutor como julgava apropriado para um cavalheiro.
“Seu imbecil! Isso é pergunta que se faça?”
E nem mesmo o próprio Aramis, com toda a argúcia e ainda a ajuda do Anselmo, conseguiu saber os detalhes de alcova do affair Perly-Ava Gardner.
Mas que a mulher deve ter sido um colosso não se pode negar, afinal deixou abalado até mesmo Frank Sinatra quando o brindou com um par de chifres em duplo sentido já que o abandonou por jovens toureiros na Espanha,
Enfim, nas noites do Colonial as histórias se seguiam e à medida que as mesas iam se formando e a madrugada avançando, o Perly se dispunha a narrar mais um capítulo com detalhes perfeitos de receitas dos pratos mais famosos, das bebidas mais conhecidas e dos detalhes mais burlescos das noitadas cariocas para a platéia sempre deslumbrada e um tanto incrédula. 
O Perly, em uma dessas tertúlias provocado pelo Emilio Mauro, a quem chamava de Doc Holiday, pelo gosto pelo baralho, contou que não conseguia mais se livrar da Ava Gardner e concordou em levá-la para uma visita ao campo nudista da Ilha do Sol, perto de Niterói, onde a rainha era Luz Del Fuego com quem o Perly também tinha tido um caso.
O velho entre um e outro gole do esfumaçante chá inglês Lipton, trazido pelo fiel garçom Colaço iniciou:
“Meu filho, a Dora, esse era no nome da Luz Del Fuego, Dora Vivacqua, mandou a Ava tirar a roupa para entrar na ilha e aí foi aquele espetáculo, as duas deusas morenas me disputando como se eu fosse um Adão no paraíso com duas Evas. Foi uma das melhores tardes da minha vida” .
O velho era de uma riqueza impressionante de detalhes nas narrativas. Contou naquela noite que quando a Luz Del Fuego tinha crises psicóticas e precisava ser internada na Clínica do Dr. Eiras, ele, Perly, fazia questão de fiscalizar que alimentassem as duas jibóias que a acompanhavam no espetáculo de streep-tease com ratinhos vivos.
Uma vez, para irritá-lo, perguntei o nome das cobras  e ele para meu espanto sabia.
Eram jibóias que segundo ele o reconheciam sempre.
“Claro que eram mansas, seu imbecil” dizia o velho, “eu as chamava pelo nome na hora de comer: formavam o casal Cornélio e Castorina”.
Eram assim as histórias das mil e uma noites do hotel Colonial narradas pelo Perly, que nos entreteram por mais de dez anos, quando um dia uma dessas reformas da modernidade bolada por algum arquiteto sem alma surpreendeu a confraria que havia tomado conta do ambiente e que relutava em permitir, para desespero do Colaço, que algum hóspede, talvez um executivo apressado, ocupasse aquele espaço sagrado.
“Aqui não!”, decretava o turco Jamil do alto de sua melíflua barba. “Que vão tomar café da manhã  no bar da esquina! Onde já se viu ocupar o nosso coffe shop, só porque são hóspedes!”
E é sobre essa despedida da noite e do Perly que fiquei de escrever para este blog. Mas quem acha que tenho coragem ou cujones para isso, para despedidas?
Como diria o velhote: “Não seja imbecil meu filho!”

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