18:55Tiro de Misericórdia

Na voz de… João Bosco

O menino cresceu entre a ronda e a cana
Correndo nos becos que nem ratazana
Entre a punga e o afano, entre a carta e a ficha
Subindo em pedreira que nem lagartixa
Borel, Juramento, Urubu, Catacumba
Nas rodas de samba, no eró da macumba
Matriz, Querosene, Salgueiro, Turano,
Mangueira, São carlos, menino mandando,
Ídolo de poeira, marafo e farelo
Um deus de bermuda e pé-de-chinelo,
Imperador dos morros, reizinho nagô,
O corpo fechado por babalaôs.

Baixou Oxolufã com as espadas de prata,
Com sua coroa de escuro e de vício
Baixou Caô-Xangô com o machado de asa
Com seu fogo brabo nas mãos de corisco.
Ogunhê se plantou pelas encruzilhadas
Com todos seus ferros, com lança e enxada
E Oxossi com seu arco e flecha e seus galos
E suas abelhas na beira da mata.
E Oxum trouxe pedra e água da cachoeira
Em seu coração de espinhos dourados
Iemanjá, o alumínio, as sereias do mar
E um batalhão de mil afogados

Iansã trouxe as almas e os vendavais
Adagas e ventos, trovões e punhais.
Oxum-Maré largou suas cobras no chão
Soltou sua trança, quebrou o arco-íris
Omulu trouxe o chumbo e o chocalho de guizos
Lançando a doença pra seus inimigos.
E Nanã-Buruquê trouxe a chuva e a vassoura
Pra terra dos corpos, pro sangue dos mortos

Exus na capa da noite soltaram a gargalhada
E avisaram a cilada pros Orixás
Exus, Orixás, menino, lutaram como puderam
Mas era muita matraca e pouco berro
E lá no horto maldito, no chão do Pendura-Saia,
Zumbi, menino Lumumba tomba da raia
Mandando bala pra baixo contra as falanges do mal
Arcanjos velhos, coveiros do carnaval

– Irmãos, irmãs, irmãozinhos
Por que me abandonaram?
Por que nos abandonamos
Em cada cruz?

– Irmãos, irmãs, irmãozinhos,
Nem tudo está consumado
A minha morte é só uma:
Ganga, Lumumba, Lorca, Jesus

Grampearam o menino do corpo fechado
E barbarizaram com mais de cem tiros
Treze anos de vida sem misericórdia
E a misericórdia no último tiro

Morreu como um cachorro e gritou feito um porco
Depois de pular igual a macaco
Vou jogar nesses três que nem ele morreu
Num jogo cercado pelos sete lados

de Aldir Blanc e João Bosco

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