15:24Dentro do vagalhão

Pronto para tudo, dissera. Tertuliano apertou mais as mãos nas bordas do bando do Jardim porque o vagalhão se aproximava para engolfá-lo de novo. Não veria a cena do dia terrível com a clareza das outras cenas, inclusive das que não tinha presenciado, mas a sentiria pelo corpo todo e outra vez não saberia o que fazer, nem o que dizer, nem o que pensar, nem onde estar, nem aonde ir, nem quem era, nem o que era, nem se estava vivo, nem se estava delirando, nem se estava acordado ou dormindo, nem como era seu nome, nem se era bicho ou gente ou coisa. E a fala do pai não lhe vinha numa sucessão de palavras como todas as falas, vinha num turbilhão sem começo nem fim, vinha como uma colcha que o abafava e o deixava sem noção de tempo. E, dentro desse cobertor, vários episódios se iluminavam num clarão assustador e repentino, como na hora em que o pai anunciou que dali em diante ele seria, para todos os efeitos, filho de Catarina e não de Albina e ele saíra correndo, o brinquedo abandonado em cima da mesa do tamarindeiro à qual ele jamais voltou e onde, como se tivesse ganho fama de amaldiçoado, o saveirinho jazia, adernado, bichado e com as velas em tiras esfiapadas, sem que ninguém mais o houvesse tocado.

de João Ubaldo Ribeiro em “O Albatroz Azul”

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