8:17Casa pobre

por Thea Tavares 

A netinha do Seo João, que mora no Boa Vista, chegou da escola triste e calada. Andava pela casa toda e ficava mais e mais pensativa. A mãe dela quis saber o porquê de tanta insatisfação num pequeno ser que deveria ser isento de preocupações e de angústias. Seis anos não é idade para se ter problemas ou grandes incômodos, muito menos para calar essas coisas e ainda mais quando se trata de uma criança sempre tão faceira, espontânea e tagarela.

“Minha filha, porque você está triste?”, perguntou.

“Mãe, como a gente é pobre, né?”, foi a resposta da menina.

“Mas de onde você tirou essa ideia? Está lhe faltando alguma coisa? Você não tem tudo de que precisa?”, espantou-se a mãe com aquela declaração.

“Hoje, eu descobri que a nossa casa é muito pobre! Não tem flores, não tem árvore, não tem bichinhos”, disse, desarmando a família toda, que nunca havia parado para medir seu patrimônio sob o ângulo de valoração da menina; sob os critérios que somente o olhar meigo da criança poderia elencar. Aliás, a história dessa boa família de trabalhadores reforçava uma tese contrária. O que responder para a pequena?

Seo João sempre foi um cidadão urbano, mas conheceu a mulher logo que a família dela veio morar em Curitiba, depois de não ter mais como sobreviver no campo, plantando a comida que passou a ficar cada vez mais escassa na mesa daqueles agricultores. Depois que o trator, as terras e o gado foram recolhidos pelo banco para cobrir as dívidas dos financiamentos agrícolas do passado, de juros exorbitantes e injustamente iguais para todos os produtores, independentemente da quantidade de terras que possuíssem ou do montante que era emprestado… Um passado que se tornou imperativo enterrar por lá mesmo, embora o trauma fosse a lembrança permanente que impulsionava a família para a nova vida. A anterior, sim, na visão deles é que era pobreza. A comunidade rural em que viviam e mais outras duas, viraram uma única plantação de soja, de um único dono, onde muitos familiares dos vizinhos do sogro de Seo João, que não juntaram suas tralhas para tomar o rumo da Capital, trabalham encurvados e calejados até hoje como empregados da fazenda.

Na cidade grande, tudo o que Seo João, a mulher, o sogro e a sogra construíram e legaram aos filhos e netos era, sem dúvida, motivo de orgulho. Da casa própria aos dois automóveis na garagem e eletrodomésticos… Dos estudos pagos para garantir um futuro sempre melhor à prole… Dos planos de saúde e aposentadoria privados, que alimentavam a certeza de que mesmo diante dos problemas que por ventura viessem a surgir, o sacrifício de um controle financeiro rígido por longos anos resultaria em alívio na hora certa.

Agora, esse inventário era questionado pela menina, que só se sentiria suficientemente abonada se convivesse com flores e bichinhos dentro de casa. Se a natureza fosse uma presença constante e notável no seu dia a dia, como os amiguinhos imaginários da infância. O tempo e as relações sociais viriam certamente agir para que ela mudasse de ideia, mas como tomar uma atitude ou fazer uso de palavras que tivessem o poder, naquele instante, de devolver o sorriso ao seu belo e inocente rosto?

O carinho da mãe, do pai, dos avós a até mesmo do irmão adolescente, com seu fone de ouvidos sempre colado ao cérebro, amenizaram o clima na casa. Mas só quem conseguiu dormir profundamente naquela noite foi a netinha do Seo João. Os demais ficaram revolvendo lembranças e projeções sobre a vida até pegarem no sono. Mesmo os incômodos carneirinhos contados não cumpriam mais sua função de desligar a realidade.

Até pouco tempo atrás, tentava-se convencer as pessoas a adotarem consciência e atitudes ecológico-preservacionistas com o clichê “que planeta vamos deixar para as futuras gerações?” e em muitos casos isso não surtiu tanto efeito porque o aviso era interpretado como se as tais futuras gerações estivessem tão distantes na linha do tempo, que jamais as ouviríamos reclamar dos nossos erros, ganância ou egoísmo.

Mas a netinha do Seo João, digna representante desses credores ambientais, está aí e precisa de respostas! Não tem mais como adiar essa conversa. Nem como fingir que não se percebe o silêncio triste e a angústia da menina, que não compreende por que deixamos por omissão individual ou coletiva a coisa chegar a esse ponto.

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