17:02Lampião não chegou a coronel, uma história de ‘Seo’ Rozendo

por Thea Tavares 

Conheci Seo Rozendo na clínica de fisioterapia que passei a freqüentar assiduamente há um ano, por imposição de uma dor-de-cotovelo, mais conhecida no meio técnico por tendinite. Quase consigo prever o tempo, já que dói mais quando esfria e a sensibilidade diminui nas épocas em que o asfalto arde de calor. Típico problema de DNA: Data de Nascimento Antiga, o que não vem ao caso, porque essa narrativa é sobre Seo Rozendo.
Não demorei para me encantar com a pessoa daquele senhor de 84 anos, com suas análises e seu jeito peculiar de contar fatos da história do Brasil, que ele, se não os viveu, ouviu de quem protagonizou esses episódios. Ele é o animador do grupo que se reúne na clínica, três vezes por semana, às 7h30 da madrugada. E desperta a atenção de todos antes mesmo da sessão começar. Seu olhar é aguçado e faz com que o homem enxergue muito além dos acontecimentos e interprete-os de uma forma inteligente e nordestinamente perspicaz.
Seo Rozendo é um cearense da gema. Melhor dizendo, natural dos “Estados Unidos do Ceará”, que é como ele costuma se apresentar nas rodas de conversa. Disse que desde muito pequeno seu passatempo favorito era ouvir as histórias contadas pelos avós sobre a Guerra do Paraguai, a abolição da escravatura, entre tantas outras, e que considera um pecado ‘da moléstia’ as crianças de hoje não terem a mesma sede de conhecimento. “- A gente aprende, ouvindo os idosos, o que não é passado nas escolas”, argumenta ele. Eu suspeito que caiba nesse discurso uma ponta de autopromoção, até para manter e incrementar os índices de audiência. De marketing, esse ex-vendedor entende muito. Mas já me peguei várias vezes pensando o mesmo que ele, quando vi o Alzheimer apagar histórias inteiras e aprendizados de toda uma vida, que, por não disporem do mesmo IBOPE das narrativas de seo Rozendo, foram sepultados junto com seus personagens.


Seo Rozendo se orgulha de dizer que é neto de coronel. Ao mesmo tempo em que fala, lança um olhar todo crítico e um tanto irônico para a plateia, como se medisse o interesse e o impacto dessas palavras. Então, depois de uma pausa de ‘mil compassos’, ele emenda: “- Naquele tempo, quem tivesse mais de 100 cabeças de gado, poderia comprar o título de coronel. A patente militar era proporcional ao tamanho do rebanho: quanto mais gado possuísse, maior era a promoção do falso milico”, comenta. E pra enriquecer de vez a lembrança do coronel Severiano, o neto lembra que Virgulino Ferreira, o Lampião, sequer foi além da patente de capitão!

Ele recorda também da grande seca de 77, que dizimou as criações lá pras bandas do terral. Cada vez que menciona o drama ocorrido pelos idos de 1877 no Ceará, transmitido geração após geração, sente que somatiza uma espécie de dor na boca do estômago, que é quase um legado genético da fome vivida pelo seu povo naquele ano. Nunca vou saber se aconteceu de verdade – e quem sou eu para duvidar do homem? – mas um fato que Seo Rozendo contou esta semana foi de tirar o fôlego. Ele disse que um amigo do coronel Severiano chegou a trocar o cavalo que tinha por uma mulher solteira, que seria morta em sacrifício para dar de comer à comunidade de famintos. E que no ranking local da serventia, a moça foi eleita para levar a pior. Lembrei-me da sereia, a novidade que veio dar na praia, do poema de Gilberto Gil sobre a música dos Paralamas do Sucesso. E até que havia certo lirismo naquela história horripilante. Seo Rozendo disse que, de fato, o tal amigo de seu avô já tinha se enrabichado pela fulana, mas, diferentemente dos outros sertanejos que se diziam, antes de tudo, fortes, valentes, saudáveis e viris, ele não encontrava um pingo de coragem para chegar junto. Foi a sentença de morte quem encorajou o pobre apaixonado. Deu o cavalo e ganhou uma noiva pra lá de agradecida. E sabe como é: mulher nova, bonita e carinhosa… O salvador da pátria gemeu até morrer!
Quem também ganhou algo com a seca de 77 foram os escravos da região. Ganharam o olho da rua. Com a morte da bicharada, os donos de terra se obrigaram a libertar os seus escravos. Estes, iludidos, mas altivos, ‘caparam o gato’, claro!  – gíria nordestina que pode ser comparada a ‘picaram a mula’, ‘deram no pé’, ‘puxaram o carro’ ou ‘vazaram’. Por sorte, não ficaram pra ver as comunidades ensandecidas pela falta de comida, a ponto de aderirem à antropofagia, senão seriam os primeiros pratos do cardápio. Foram redigir a mesma ‘petição de miséria’ só que em outros cantos. Passado o período tenebroso, os senhores de terras perceberam que era mais barato pagar os pobres herdeiros da fome local para fazerem o trabalho da lavoura, que manter os escravos negros na lida do campo. Modelo que se perpetuou Brasil afora e que hoje atende pelo nome de contrato de trabalho assalariado. Foi assim, de acordo com a interpretação de Seo Rozendo, que o Ceará se tornou o primeiro estado brasileiro a abolir a escravatura e isso começou pelo município de Redenção, a antiga Vila Acarape, em 1º de janeiro de 1883. Ele diz, ainda, que, na entrada da cidade, essa história de liberdade é romanticamente retratada no monumento da Negra Nua, dando graças aos céus e rompendo os grilhões que a aprisionaram.
Enfim, a vida do meu companheiro de fisioterapia rende muitas e muitas histórias. Um estranho sentimento de perda vai me acompanhar assim que receber alta desse tratamento.

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