8:15Philip Roth

Publicado hoje no jornal Gazeta do Povo:

Homem incomum
O Caderno G Ideias aborda a obra do autor americano considerado por muitos o maior entre os vivos, que trata de homens massacrados pela História, pelo sexo e pelo tempo

por Marcio Renato dos Santos e Irinêo Baptista Netto
 
Philip Roth é o único escritor que teve sua obra publicada pela Library of America (Biblioteca da América) ainda em vida. Ao lado de dezenas de outros nomes que formam a literatura dos Estados Unidos, de Herman Melville a William Faulkner, o autor de Homem Comum terá toda a sua bibliografia editada em papel especial (que não oxida) e sua obra jamais ficará fora de catálogo – um dos compromissos da organização sem fins lucrativos fundada em 1979 e mantida com o dinheiro do National Endowment for the Humanities (órgão do governo americano) e pela Fundação Ford.
A literatura de Philip Roth, hoje com 76 anos, não envelhece. Ele já escreveu três dezenas de livros; o 30.º, A Humilhação, sai no Brasil em março no ano que vem, pela Companhia das Letras. Nemesis, o 31.º, está em finalização.
A capacidade de fabulação de Roth é imensa, e uma das virtudes do escritor é mencionada pelo escritor Ronaldo Bressane (Céu de Lúcifer): “Ele (Roth) escreve cenas de sexo como ninguém, com detalhes, humor, realismo e classe.”
Falar, mais que isso, escrever sobre sexo é mais difícil do que se pode supor. É preciso elaborar cenas que funcionem e não descambem para a pornografia, para o pieguismo ou para a mera descrição relatorial. O Complexo de Portnoy, escrito sob a influência de Franz Kafka – de acordo com o próprio Roth –, é um exemplo disso (leia mais na página 2).
Quem leu apenas seus trabalhos mais recentes, como Fantasma Sai de Cena ou Indignação, não faz ideia do quanto ele sabe ser engraçado – característica que aparece em seus primeiros romances, When She Was Good (1967) e Letting Go (1962), inéditos no Brasil.
Ritmo
Bernardo Ajzenberg, autor de Olhos Secos, chama a atenção para outros aspectos presentes na literatura de Roth. “A liberdade na escolha e no desenvolvimento de seus temas, sempre provocantes e capazes de tocar fundo na sensibilidade dos leitores, e a riqueza estrutural das frases que ele elabora, com um ritmo sedutor e imagens diferenciadas”, diz Ajzenberg.
Usando alter egos famosos (Nathan Zuckerman, David Kepesh e um Philip Roth ficcional), o escritor já tratou de amor, morte, paixões, inveja, decadência física e moral etc.
O interessante é que os protagonistas de Roth envelheceram com ele. Fantasma Sai de Cena deve ser a coda para a série de Zuckerman. O Animal Agonizante tem a mesma função nos livros sobre David Kepesh.
A história recente norte-americana também está incoporada em sua prosa, como pano de fundo, cenário, contexto geral da ficção elaborada por um autor que parece mesmo atento a tudo o que se passa na vida de um homem.
Conflitos armados, por exemplo. A Guerra Fria está no enredo de Casei Com Um Comunista (um parágrafo deste romance arrasa boa parte da ficção que costuma ocupar as listas dos mais vendidos). A Segunda Guerra Mundial embala a distopia de Complô Contra a América. A Guerra da Coreia é elemento central do fantástico Indignação, todo construído em torno da frase final.
“Roth consegue ir do particular para o geral com uma sutileza enorme. A História se mescla com as individualidades de uma forma natural. Os temas mais amplos interferem nas coisas minúsculas e vice-versa, que é como ocorre na vida real”, analisa Ajzenberg.
O escritor gaúcho Daniel Galera (Mãos de Cavalo), fala que Roth parece incapaz de escrever mal e tem uma série de argumentos que o credenciam não apenas como um escritor de primeira qualidade, mas também como o maior americano vivo.
“Em primeiro lugar, pela prosa vigorosa, elegante, enérgica. Em segundo, porque é um escritor sem medo de reconhecer e até defender fraquezas e instintos essenciais do homem, na medida em que fazem parte de nossas vidas e não podem ser negados ou desprezados. Em terceiro, porque aborda com muita sofisticação e coragem o problema dos limites entre a literatura e a vida, entre a ficção e a realidade”, diz Galera.
Flip
Na próxima quinta-feira, Flavio Moura, curador da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), terá um encontro com o agente literário de Roth. Moura, a exemplo do que postou no blog do evento, sabe que as chances de Roth participar do evento no litoral fluminense são mínimas, mas, como ele mesmo diz: “perguntar (no caso, convidar) não ofende e a insistência faz parte do ofício”.
Nos últimos cinco anos, Roth escreve e publica livros cada vez mais breves – seus romances foram de quase 600 páginas para menos de 200. Fato: quanto mais sintético é o livro, maior é a intensidade da história narrada.
“Eu quero que ele morra logo para parar de nos humilhar com uma obra-prima por ano”, diz Ronaldo Bressane.
————————-
Aos 40, Complexo de Portnoy segue obsceno e engraçado
Romance que fez de Roth um escritor milionário é uma confissão dos problemas e perversões do personagem-título ao seu analista

por Irinêo Baptista Netto

Philip Roth ganhou o Prêmio Nacional do Livro por sua estreia, Adeus, Columbus (1959). Mal-e-mal comparando, é o equivalente americano do Jabuti no Brasil, dado pela Câmara Brasileira do Livro. O escritor tinha apenas 26 anos.
Uma década e dois romances depois, ele publicou O Complexo de Portnoy, colocou a obscenidade na mesa e ficou milionário. A narrativa é uma confissão verborrágica de Alexander Portnoy, um judeu americano que tem dificuldades para lidar com seus impulsos sexuais. Quanto mais os reprime, mais perversos eles se tornam. Portnoy conta suas desventuras e obsessões para um analista, o doutor Spielvogel.
Agora, o livro faz 40 anos e, se não choca da mesma forma que fez nos anos da contracultura, continua sendo um romance arrebatador. Uma viagem pelas neuroses de um adulto que ainda não se livrou das influências da mãe e do pai. Incapaz de assumir um compromisso com qualquer mulher, ele pula de cama em cama tentando – ou fingindo que tenta – encontrar uma que dê conta de seus desejos e também seja uma garota de família, do tipo que se pode apresentar para os pais num almoço de domingo.
Na ficção, Portnoy acabou virando nome de um “quadro mórbido caracterizado por fortes impulsos éticos e altruísticos em constante conflito com anseios sexuais extremos, muitas vezes de natureza pervertida”. Já se falou tanto da pornografia contida no livro que fica difícil corresponder as expectativas de um leitor de hoje. Dá para dizer, por exemplo, que qualquer coisa do Marquês de Sade (século 18) ou de Georges Bataille (na primeira metade do 20) é muito mais picante que o texto de Roth. Mas ele tem seus momentos.
A questão para a época não foi apenas o erotismo – embora ele tenha ajudado e vender o livro. “O tema de Portnoy, como convém, era a rejeição do dever e a tentativa determinada e fútil do herói de se libertar da responsabilidade e da culpa”, escreveu Michiko Kakutani, do New York Times. A crítica diz que o método de Roth envolve usar a própria vida e a carreira como assuntos, reinventando ambas e dando a elas a dimensão de um mito literário.
“Estava à procura de coisas que cristalizassem uma experiência vaga e nevoenta. Acho que escrever é como representar, fingir. Por que fiz Zuckerman (protagonista de vários livros do autor, começando por Diário de uma Ilusão) ter minha idade? Porque sei o que significa ser desta geração. Por que fazer com que Zuckerman escreva aquele tipo de livro? Porque sei acerca daquele tipo de livro e suas consequências. Mas é linguagem e sensibilidade moral que transformam uma experiência crua em ficção”, disse Roth ao Times no início dos ano 80.
O Complexo de Portnoy forneceu o primeiro esboço do que seria um personagem típico da literatura de Roth. Nas palavras de Kakutani: “Brilhante, sensível e dolorosamente autocrítico, um desses filhos protegidos de judeus da baixa classe média, divididos entre o dever e o desejo, necessidades de menino e aspirações do homem, lealdades de família e obrigações estéticas. Sentem-se dominados por mulheres predatórias e pais severos e ainda são assediados por suas próprias consciências cheias de culpa”.
Além de obsceno, Portnoy é muito engraçado. Às vezes, é preciso interromper a leitura por causa das gargalhadas. O problema é que todas as cenas divertidas são pornográficas demais para citar aqui.
Cinema
Pelo sucesso editorial e a polêmica que causou, O Complexo de Portnoy demorou apenas três anos para ganhar uma adaptação para o cinema. O filme foi escrito e dirigido por Ernest Lehman (1915-2005), um roteirista dos grandes, autor de Intriga Internacional, do Hitchcock, Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, com Elizabeth Taylor e Richard Burton.
Roth nunca teve muita sorte com o cinema – embora a versão para Adeus, Columbus (1969) seja considerada boa.
Mais recentemente, Anthony Hopkins e Nicole Kidman estrelaram Revelação (2003), baseado em A Marca Humana, recebido com frieza pelo público e pela crítica.
Tido como um autor que não costuma se importar com suas personagens femininas, é curioso que o melhor filme feito a partir de um livro de Roth seja o único que foi dirigido por uma mulher, a espanhola Isabel Coixet.
Fatal (2008) leva às telas O Animal Agonizante e coloca sir Ben Kingsley no papel de David Kepesh, um dos célebres alter egos de romancista, às voltas com a paixão que sente pela cubana Consuela, vivida por Penélope Cruz. Figura apaixonante, ela é talvez uma exceção no universo masculino do autor.

Portnoy
“Ela estava tão profundamente entranhada em minha consciência que, no primeiro ano na escola, eu tinha a impressão de que todas as professoras eram minha mãe disfarçada. Assim que tocava o sinal ao final das aulas, eu voltava correndo para casa, na esperança de chegar ao apartamento em que morávamos antes que ela tivesse tempo de se transformar. Invariavelmente ela já estava na cozinha quando eu chegava, preparando leite com biscoitos para mim. No entanto, em vez de me livrar dessas ilusões, essa proeza só fazia crescer minha admiração pelos poderes dela. Além do mais, era sempre um alívio não surpreendê-la entre uma e outra transformação – muito embora eu jamais deixasse de tentar; eu sabia que meu pai e minha irmã nem faziam ideia da natureza real de minha mãe, e o peso da traição que, imaginava eu, recairia sobre meus ombros se alguma vez a pegasse desprevenida seria demais para mim, aos cinco ano de idade.”
Trecho de O Complexo de Portnoy, de Philip Roth. Tradução de Paulo Henriques Britto.

——————-
Entrevista com Carlos Nascimento Silva, escritor.

A literatura como pretexto para pensar a vida
por Márcio Renato dos Santos 

Carlos Nascimento Silva, apontado com unamidade pela crítica como um dos mais importantes escritores brasileiros, afirma: “Prefiro Philip Roth a qualquer outro escritor vivo que tenha lido.”
Silva, que venceu o prêmio Jabuti, edição 2005, com o romance Desengano, consagrado como umas mais relevantes longa narrativas contemporâneas, concedeu entrevista exclusiva à Gazeta do Povo para falar sobre Roth. O escritor brasileiro definiu o seu autor predileto (Roth) como, antes de mais nada, um pensador. E também disse o que não gosta na ficção de Roth. Confira:

Qual é o aspecto da literatura de Philip Roth que mais chama a sua atenção?
O aspecto que mais gosto na literatura de Philip Roth é conteudístico: sua preocupação com o ser humano, sua procura, sua busca no interior do homem: a mentalidade, o caráter, psicologia, sentimentos, emoções, sensações. Já que o leio traduzido do inglês, nem posso ter ideia de sua qualidade literária em termos estilísticos, ou seja, o aspecto formal de sua escritura. Portanto, voltemos àquilo de que gosto e não gosto, na literatura de Roth, dentre o que posso aquilatar.

O que seria?
Gosto de seu grau de cultura, de sua capacidade de análise do mundo objetivo mas, principalmente, de seu mergulho vertical no interior do ser humano. E aí mora, também, o que menos gosto em seus textos. Utilizando um exagero didático, é quase como se fosse uma distinção entre o texto ensaístico e o texto ficcional. A mim me parece importante que um romancista tenha uma vertente criativa, de aspecto ficcional, que em Roth é bastante pequena. Pode-se perguntar: “Mas ficcional em que sentido? Por favor, dê um exemplo!” Hoje, eles são muitos. O maior deles, talvez, Tolkien, criador de todo um universo ficcional. Em resumo, existe todo um aspecto de criatividade romanesca que não é o forte de Roth. Na verdade, ele é muito mais um pensador – e que pensador! – como alguns outros romancistas. É quase como se a literatura lhe servisse de pretexto para pensar a vida, pensar o mundo. Até mesmo escolas literárias, inteiras, tiveram este vezo (costume vicioso), mais, este modelo, este objetivo. Às vezes é o inverso. São ensaístas, da melhor qualidade, que se deixam emocionar e romantizam, poetizam um texto que se devia manter… vamos dizer, menos metafórico. Mas isto é uma questão para a teoria do discurso.

Quem são os autores com quem Roth dialoga?
A ideia de que os artistas procuram modelos aos quais buscam assemelhar-se parece, há algum tempo, simplista. Se há uma coisa que um artista busca é criar; o que mais deseja, inovar. Conheci artistas que buscaram fechar os olhos a seus antecessores, tal o medo de que as obras deles os contaminassem com idéias que não fossem as do próprio autor. Quanto aos autores que Roth lê, provavelmente, serão muitos, já que todo escritor é, antes de tudo, um devorador de livros. E saber o que ele lê não nos permitiria estabelecer influências, segundo a crença comum. Nem mesmo os computadores teriam memória para tanto!

Sobre o que Roth ainda não escreveu?
Philip Roth, como a maioria dos romancistas sérios e responsáveis, escreveu sobre as grandes preocupações humanas: desejo, sexualidade, velhice, morte, diferenças e semelhanças, sucesso e fracasso, bondade e maldade etc. Mas esses temas, apesar de recorrentes dentre as preocupações humanas, são muito variados e, assim, cada autor tende a tematizar as preocupações que mais os tocaram, em sua vivência. Penso que esses temas, mesmo sendo recorrentes, como dissemos, talvez possam ter uma listagem imensamente grande, dadas suas especificidades, em cada caso. Talvez fosse possível listar certo número de paradigmas, mas onde isso nos levaria? Cito um exemplo. Eu não diria que Roth se haja preocupado, especialmente, com sadomasoquismo, em sua obra.

Por que ler Philip Roth?
Não sei responder a isto. Penso que cada pessoa deva escolher, livremente, o que quer ler, pelo simples motivo de que o interesse de cada pessoa varia imensamente. Se considerarmos que lendo 12 horas por dia, durante toda nossa vida útil, ainda assim não teremos lido mais do que uma fração infinitesimal daquilo que foi escrito pela humanidade, temos que ter a humildade de jamais publicar mais uma antologia.

É possível reconhecer os leitores de Philip Roth? Ou, de outra maneira: o que há de comum entre os leitores de Roth?
Creio que se interessam mais pela obra de Philip Roth pessoas que gostam das chamadas ciências humanas e sociais, uma vez que são os assuntos mais tratados pelo autor. Não tenho muita certeza de que seus escritos atraiam os práticos engenheiros ou médicos de hoje, parece que os de antigamente, sim, assim como parecem atrair psicólogos, professores, antropólogos culturais, filósofos e literatos, embora isto, muitas vezes, dependa de educação e valoração dos pais pela literatura.

——————–

As ruas da memória de um escritor
No texto a seguir, repórter de jornal nova-iorquino percorre a cidade de Newark, em Nova Jersey, visitando locais importantes na vida e na obra de Philip Roth

Por  David Carr, The New York Times – Tradução de Márcia Saliba 

Nova York – É um dia de aula. Crianças saem em bando da Escola de Ensino Médio Weequahic e da escola de ensino fundamental ao lado numa grandiosa tarde de outubro, berrando planos e até-logos sob o céu de um azul intenso. Com olhos um pouco estrábicos, você pode ver o que Philip Roth viu décadas atrás quando era um jovem rapaz.
No romance Complô Contra a América, publicado por Roth em 2004, o bairro de Weequahic dos anos 30 e 40 é um paraíso autossuficiente, uma preservação cultural para alguns, um gueto para outros. Hoje em dia, cruzando a rua da escola em direção à Avenida Summit, se encontram casas de madeira quase idênticas de dois pisos, telhados triangulares e degraus de tijolos vermelhos, incluindo a segunda na Avenida Keer, a antiga casa de Roth. Bato a campainha e a porta se abre.
“A dona da casa não está”, explica uma senhora negra, muito educada e um pouco assustada. “Volte quando ela estiver e poderá falar com ela.”
E Philip Roth?
“Não sei nada dele”, ela diz.
Quem pode culpá-la? Os judeus de Weequahic – os problemáticos, brigões de pés-em-dois-mundos da ficção e juventude de Roth – se foram, impulsionados por sua ascensão social e pelas rebeliões de 1967. O bairro foi poupado do pior, mas as revoltas afugentaram os comerciantes quando as lojas em outros locais da cidade foram saqueadas num ataque de fúria atávico. Os brancos, incluindo os judeus, ficaram assustados e partiram. Gradualmente os negros se tornaram a maioria. O que restou é ainda uma bairro de pessoas com esperança de mobilidade social mas a Avenida Chancellor, o coração de Weequahic, não tem mais viabilidade comercial. Vire na esquina errada, dizem alguns dos moradores, e outro tipo de comércio, furtivo e transitório, estará acontecendo.
Ao sul de Newark, atrás do aeroporto, Weequahic era um lugar almejado. Os judeus chegados recentemente economizavam nos apartamentos simples no Terceiro Distrito de Newark e depois, mudando-se para Weequahic no alto da colina, juntavam-se ao círculo mais inferior da classe média.
Hoje em dia, a cidade tem seu charme – um relativamente novo centro de artes, uma liga de beisebol de segunda divisão e o incomparável banquete carnívoro do Ironbound –, mas a Newark dos livros de Roth não é mais que a memória compartilhada por todos que viveram lá um dia.
“Em alguns lugares nas cercanias do bairro, ainda é possível ver como era antes”, Roth disse numa entrevista. “Mas à medida que entro na cidade, vejo apenas um deserto. Só muito vagamente se percebe o que costumava ser.”
Newark serviu de pano de fundo para muitos dos livros de Roth – Complexo de Portnoy, Pastoral Americana, Casei Com Um Comunista – e ele diz que essa evocação é mais do que um jogo de memória.
“É parte integrante e indissociável do livro”, afirma. “Eu quero que esses lugares pareçam verdadeiros e quero ser o mais preciso que puder ao apresentar o cenário social.” (Numa de suas fotos para a divulgação de seus livros, o autor aparece diante do mapa de Newark.)
Na ficção, o efeito é, com frequência, sobrenatural, devido ao quanto a cidade e o bairro de Weequahic mudaram. Alguém que refaça os passos do jovem protagonista de Complô Contra a América não precisa se esforçar muito para ouvir os ecos. O Orfanato de São Pedro, um prédio da igreja católica que ocupava quase quatro quadras num bairro judeu, não existe mais. Mas, descendo a Avenida Goldsmith perto do antigo orfanato, quase se ouve Alvin, o primo malvado de Phil, cantando os números num jogo de dados.
Pegue à direita na Rua Hobson e surge na mente uma cena do livro em que um investigador do FBI interroga Phil sobre o primo. Pare na cerca do terreno do velho orfanato e você quase pode ver os cavalos que pastavam ali.
Elliot B. Sudler, um farmacêutico aposentado, lembra dos Roth e dos cavalos. Certa vez, num ato de ousadia, ele pulou a cerca e montou em um dos cavalos. “Não conseguia descer”, ele recorda. “Fiquei em cima daquele cavalo por uns 15 minutos antes de conseguir descer.”
Num dos momentos cruciais do livro, o jovem Roth entra naquelas dependências dos cavalos no escuro e paga caro por isso.
Sudler estava alguns anos mais adiantado que Roth na escola de ensino médio de Weequahic, mas se lembra bem dele. “Ele era um sonhador, do tipo pálido”, afirma Sudler. “Não se guiava pelo fatos mas sempre parecia saber o que ia acontecer.”
Bem no alto, na Avenida Chancelor, fica a escola fundamental em cuja Associação de Pais a mãe de Roth trabalhava e a escola secundária que atendia a comunidade. Num sábado recente, Joe Komp, o zelador da escola secundária, está esperando uns times chegarem ao campo. Ele abre a porta da escola e revela uma maravilha de art déco, construída em 1932 (pelo Programa de Trabalhadores Desempregados durante a Grande Depressão), com murais, mármore e piso de cerâmica. Uma placa homenageando os homens que morreram na Segunda Guerra Mundial – homens com sobrenomes como Pollack and Greenberg – confirma que o romance de Roth é um horrível vôo de imaginação.
A escola ficou famosa pelo excelente time de basquete e intenso programa de bolsa de estudos. No anuário de sua escola, A Lenda, Philip Roth, 16 anos, é descrito como “um garoto de muita inteligência, combinada com discernimento e bom senso”. Ele é o mais famoso, mas entre os ex-alunos há executivos, juízes, doutores e rabinos.
Jack Kirsten, juiz aposentado, vive agora em Short Hills, Nova Jersey. Era vizinho dos Roth quando eles se mudaram para Leslie Street em 1942, depois que o proprietário aumentou o aluguel em Summit.
“Quando eu li O Complexo de Portnoy, tudo me era familiar”, conta o juiz Kirsten. “Eu dei o livro para minha mãe e ela disse: ‘Não posso entender por que um bom menino judeu escreve um livro sujo desses’. Philip escreveu uma carta para ela explicando que seu latido é pior que sua mordida.”
Depois que os pais de Roth se mudaram para Elisabeth, ele passeava de carro pelo bairro em várias visitas, além de voltar outras vezes para observar enquanto escrevia Complô Contra a América.
Roth disse que o bairro não é mais integrado como costumava ser, pois trechos da Autoestrada 78 e Garden State Parkway dividem as ruas. “O bairro foi destruído pelas rodovias como todo o resto”, afirmou.
No alto em Summit, as recordações permanecem. Em Complô Contra a América, Phil vê seu bairro com novos olhos depois da chuva, o que o leva a fazer uma promessa que não consegue manter: “Tingida pela luz clara depois da tormenta, a Avenida Summit estava tão brilhante quanto um bichinho de estimação, meu próprio, sedoso, pulsante bichinho de estimação, lavada por cortinas de água e agora estendida em todo comprimento para refestelar-se em êxtase. Nada jamais me faria deixar isso aqui.”

Trajetória
Saiba mais sobre a trajetória de Philip Roth
1933
Nasce, no dia 19 de março, em Newark, na Nova Jersey.
Estudo e ensino
Estudou em sua cidade natal e frequentou a Universidade de Bucknell e a Universidade de Chicago, onde completou seu mestrado e ensinou Inglês. Nas universidades de Iowa e Princeton, ensinou Escrita Criativa, e por muitos anos lecionou Literatura Comparada na Universidade da Pensilvânia.
Estreia
O primeiro livro de Roth, Adeus Columbus, de 1959, empolgou a crítica, rendeu um prêmio, o National Book Award de ficção.
Consagração
Mas Roth se tornaria, definitivamente, um escritor conhecido, principalmente com muitos leitores (além do endossamento crítico), devido a O Complexo de Portnoy, de 1969 (leia mais na página 2), que ainda hoje, depois de 30 livros publicados, é tido por muitos de seus admiradores como a sua mais complexa e perfeita obra.
1977
Recebe o Prêmio Pulitzer pelo romance Pastoral Americana.
Coleção de prêmios
Com o passar do tempo, Roth iria acumular prêmios. Em 1998, recebe a Medalha Nacional das Artes na Casa Branca e, em 2002, conquistaria a mais elevada premiação concedida pela Academia Americana de Artes e Letras, a Medalha de Ouro de Ficção. Ganhou duas vezes o Prêmio Nacional do Livro e o Prêmio do Círculo Nacional de Críticos Literários. Em 2007, ganhou o Prêmio PEN/Faulkner pela terceira vez e, ainda, o primeiro PEN/Saul Bellow.
No Brasil
Obras de Philip Roth disponíveis no Brasil, todas elas editadas pela Companhia das Letras: Adeus Columbus (Edição de bolso), O Animal Agonizante, O Avesso da Vida (Edição de Bolso), Casei com um Comunista, O Complexo de Portnoy, Complô Contra a América, Entre Nós (não-ficção), Fantasma Sai de Cena, Homem Comum, Indignação, A Marca Humana, Pastoral Americana.
O Teatro de Sabbath e Operação Shylock, anteriormente disponíveis, estão esgotados.
2009
Atualmente, Roth vive em Connecticut.
Fontes: Philip Roth Society e Companhia das Letras.

—————-

Romance é uma fantasia sombria
Publicado no The New York Times – Tradução de Márcia Saliba

Nova York – Em Complô Contra a América (2004), uma sombria fantasia do que poderia ter acontecido na Segunda Guerra Mundial, o seu quinhão do sonho americano é ameaçado e tudo o mais, quando Charles Lindbergh, um herói do outro lado do Atlântico conhecido por sua admiração a Hitler, derrota Franklin Roosevelt para Presidência em 1940. Ao fazer um acordo com os nazistas, Lindbergh mantém a América fora da guerra e deixa os judeus americanos em situação delicada. Newark, com mais de 70 mil judeus e 50 sinagogas, é imediatamente colocada em perigo, particularmente por um membro da comunidade, o rabino Lionel Bengelsdorf, que trai a comunidade em grande estilo. Visto através dos grandes olhos pré-adolescentes de Philip Roth, seu pequenino e hermético bairro vive o medo de uma perseguição na América, em que os judeus são frequentemente vistos como alienígenas ou pior que isso. No livro, ele e sua família lutam, sacrificando quase tudo, para ficar no bairro que amam e que os ama também.
Phil observa o futuro sinistro, revelado nos documentários de 60 minutos do Newsreel Theater. Ali, sentado no escuro ao lado do pai, ele vê Hitler andar pela Europa, sem oposição nessa reescritura da história americana. O Newsreel Theater ficava na esquina da Market e Broad, uma intersecção que estava entre as mais movimentadas do mundo nos anos 30 e 40. A maior parte do tráfego acabou e o prédio foi dividido em três fachadas de lojas, a do meio apresentando um fila de sapatos em promoção. Hyo Kang, o dono da sapataria Golden Shoes, conta que ouviu dizer que ali era um cinema, mas que isso foi antes dele.
Muitos judeus vivem na colina ao Sul, enquanto os italianos moram no velho Primeiro Distrito ao Norte e os irlandeses e alemães em Ironbound. No livro, Phil vê sua Newark revelada à medida que o ônibus sobe a ladeira da Avenida Clinton. O Riviera, o hotel sofisticado em que seu pai e sua mãe tinham passado a primeira noite de casados – local onde os negociantes e mafiosos fechavam acordos no bar –, surge ao fundo. Agora é um hotel de condições bem ruins, o Divino Hotel Riviera, por causa do Pai Divino, um líder religioso que fundou uma seita no início do século passado. No alto da colina, atrás dele, fica a igreja Batista Hopewell, mas a escultura do Torá no topo lembra que os antigos frequentadores eram membros do Templo de B’nai Jeshurun.
Mais acima na Avenida Clinton, o Templo B’nai Abraham sobressai pelo tamanho e forma ovalada que ultrapassa as maiores igrejas da região. Nat Bodian, obstinado historiador de Newark, levava sua esposa lá quando estavam namorando, transformando uma noite de sermão do rabino Joachim Prinz num encontro romântico. Esse templo também serve a outros propósitos e é agora sede do Deliverance Temple.
Mais ao alto, em Clinton Hill, o Teatro Roosevelt, antigo lugar de reunião do bairro, tornou-se uma loja de produtos religiosos cristãos, a marquise se foi e as filigranas arquitetônicas foram pintadas. Atravessando a rua, uma antiga mansão, construída por um dos comerciantes judeus prósperos que reergueram o bairro, é o retrato da entropia, seus detalhes vitorianos gradualmente puxados para cima e para baixo de acordo com as leis de Newton.
Algumas partes da área continuam sem mudanças. O Parque Weequahic, planejado por Frederick Law Olmsted, possui um lago urbano e um campo de golfe. No pôr-do-sol ou no outono, algumas pessoas passeiam sob a luz manchada de sombras das árvores pendentes.

Compartilhe

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.