18:54As carroças

Tinha carroças, Vânia, tinha carroças
nos meus tempos de menino.
Tinha sabe o quê?
Carroças dos lenhadores
que nos vendiam lenhas a metro,
dos que carregavam lavagem para os porcos,
carroças novas e velhas, bonitas e feias.
E só hoje vejo que todas elas eram lindas e mágicas
e cantadeiras de um amor feiticeiro
que incendiava os dias de lantejoulas daquele tempo.
Vânia do céu, como tinha carroças e histórias e vidas
dependuradas nelas, espantando cavalos,
descansando ao sol da tarde, guiando os animais
para a zona, vendendo verduras, transportando carvão, atravessando a madrugada, pisando em pedregulhos e…
Meu Deus dai-me as minhas belas carroças,
dai-me os castigados cavalos, os gritos dos lenhadores,
das filhas dos lenhadores, o ranger das rodas, as horas,
o cheiro de café  torrado em panelões pretos,
cheiro de café  passado em coador,
fumegando no bule, nas canecas esmaltadas.
Ah, meu Deus dai-me o tanque e a água
suja das roupas, embaçada de sabão de cinzas.
Dai-me a voz de minha mãe cantando e as cantigas
de passarinhos e latidos de cães e Sônia Ribeiro
animando seu programa na Rádio Record de São Paulo
e tudo e tudo e tudo
que são universos humildes, pequenos,
parecendo migalhas que se perdiam
nas toalhas furadas da mesa de minha casa.
Sabe Vânia, esse lugar era bonito
e se enfeitava de sol e carnaval
e espiava por vezes a beleza dos artistas
pelas páginas da Revista do Rádio,
e era bom e tinha seus sustos,
seus bêbados, suas brigas na rua,
mas era bom, insistia em ser bom, vivia sendo bom.
Debaixo das estrelas, do céu, das lendas,
da melancolia, das rezas, dos anjos e do inferno,
debaixo de tudo isso repousava esse país
cálido, perfumado, com carros e galinhas e boiadas
e sineta de escolas e suspiros comprados na venda.
Repousava esse país das carroças, dos cavalos,
dos tropéis, dos gritos, da linguagem selvagem
e humana, do amor dos animais.
E as carroças, ah meu Deus, meu Deus,
passavam por nós invisíveis
nas suas fagulhas de fogo…

de Zeca Corrêa Leite

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