17:28A avó

por Zeca Corrêa Leite

A noite toda ouvi sinos tocarem em meu sono
e na penumbra dos espelhos manchados
refletiu-se a nostalgia em ouro das velas silenciadas.
Minha avó  desmanchava as longas tranças
deixando os cabelos caírem até a cintura,
nem inteiramente brancos ou escuros,
passagem lenta da vida para a palidez do esquecimento.
Ela passava o pente num ritual solene, interminável,
indiferente ao soar dos sinos atormentados na demência.
Plangiam em badaladas de dor a morte de um pobre ente,
tocavam festivos saudando dias de guarda e de festa,
marcavam insones as horas no correr das madrugadas.
Os sons atravessavam minh’alma como lanças chamejantes
carregadas de imagens de vivos e de mortos,
e minha avó, distraída, penteava os longos cabelos
que se perdiam na escuridão da noite.
Fios ondulados porque eternamente postos em tranças
que ela trazia presas junto a nuca.
Minha avó  morava numa casa
que cheirava a flores e velhice,
e conforme soprava o vento, mais nitidamente se ouvia
o bater do sino da igreja, anunciando a passagem do tempo,
chamados para a missa, a lentidão dos passos
dos homens piedosos que levavam seus mortos
para serem enterrados, revezando-se em carregar os caixões.
O bater compassado do metal misturava-se aos passos
dos vultos silenciosos, como se fosse uma coreografia
de susto e de dor, gemidos e ais abafados.
Lá ia a procissão vestida de luto, e o vento que vinha frio
trazia outros dias e chuvas, manhãs ensolaradas,
missas dominicais, quermesses juninas,
a agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo
e o lento passar das horas…
Minha avó  passava o pente nos cabelos da noite
despencando estrelas que rolavam entre a cama e o toucador,
cantava canções imemoriais e as almas das crianças mortas
atravessavam o quarto, adormecidas,
embaladas pelo veludo da voz.
De pé, ao lado do guarda-roupa, eu olhava muda para a cena,
absorta em sonhos e espantos,
quedada pelos mistérios e fantasias.
Era um momento único, sem antes nem depois, eu ali posta
testemunhando luzes siderais, páginas dos livros
concluídos.
Quem me dera o olhar vazado das criancinhas,
pontas das estrelas sangrando as palmas de minhas mãos.
Perfumes das flores entontecidas deixavam doce o ambiente
e minha avó, indiferente ao mundo que
despertava à  sua volta,
penteava os cabelos ouvindo ao longe o sino que tangia
histórias de sombras e de luz.
Maquinalmente anestesiada,
a velha refazia as longas tranças,
repetindo um gesto que vinha dos tempos de moça,
quando os sonhos ainda eram maleáveis
como os fios brilhosos, cheios de vida.
Clarões passavam esparsos em seus olhos
nos momentos em que cenas do passado
ganhavam a força do presente.
Quais segredos seriam aqueles que a faziam contrair o cenho
num esgar de apreensão e sofrimento?
Que amores contrariados medravam espinhos em sua alma
acostumada a raízes tão profundas nos solos esquecidos?
De que morins e tafetás vinham os cheiros de panos
que inundavam o ar sereno do quarto em penumbra?
(Canções desprotegidas adormeciam entregues,
silenciadas nos lábios cerrados e finos.)
Procissões passavam pela rua mal iluminada,
os hinos soavam chorosos e tristes,
arcos de flores colocadas no sereno
circundavam o andor de Maria Santíssima Nossa Mãe,
piedosa Maria das dores do Filho Morto
e os fiéis se confessando ao padre:
“perdoa-me porque pequei”.
Naqueles repousos de noites quentes e apascentadas,
essas almas pesadas de medo e luz
cantavam para os santos em busca de perdão.
O sino batia no alto do campanário
pondo fim aos atropelos do coração,
trazendo sono aos viventes,
derramando chuvas de quietude e paz.
Só a lua caminhava esquecida no céu
e os cães latiam sem graça trincando o silêncio.
Meu peito cobria-se de retalhos e espantos:
a avó, numa estranha marcação com o bater do sino,
prendia as tranças com grampos enormes e parecia
varar a densidade dos fios entrelaçados penetrando-os
na rigidez da cabeça.
Queria esconder os olhos daquela visão terrível,
ocultá-los sob meus braços,
chorar até  que a última gota de sangue
secasse no vestido. A cada batida do sino,
um novo grampo;a cada grampo a cegueira da dor que me atingia.
O grito mudo correndo em mim e eu olhando impassível
a imolação da avó, mãos geladas, boca seca,
feridas em sua cabeça.
desvario de momentos, asfixia, desespero
e, lá fora, a noite diluindo-se em paz entre luzes e sombras.
As velas crepitavam, mirando-se
no espelho manchado de velhice
e eu me via refletida nessa sarabanda de ouro e penumbra:
os olhos profundamente tristes,
poços de solidão e perguntas,
a pele muito pálida, ausência de um porto seguro.
O sino refugiava-se trêmulo no tormento de sua demência
E, indiferente a tudo, silenciosa, igual a um fantasma
minha avó  tirava do pente fios de cabelos emaranhados,
e para o céu jogava, piedosa, as estrelas caídas no chão.

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