7:39HORÓSCOPO

por Zé da Silva

Peixes

O anzol varou a língua e cravou no céu da boca quando ele estava sossegado na toca depois da curva do rio. A água era barrenta, mas enxergava tudo. Tubarões predadores, botos cor de merda, piranhas desdentadas, peixes elétricos com lâmpadas no rabo, lambaris gigantes, tucunarés ornamentais. Não saía dali por uma questão de sobrevivência. Da alma, que acreditava ter, porque um dia viu a imagem de Nossa Senhora Aparecida ser içada numa rede e um raio de luz iluminou a santa e recortou o fundo do barco na superfície. Conhecia o lado de fora daquele mundo de água. Teve azar porque no dia em que foi dar uma espiada, descobriu a poluição industrial e a humana, pois um cadáver putrefato boiava com um tiro na nuca. Até então só conhecia um tipo de desova. Pensou em tudo isso enquanto tentavam lhe tirar da toca e a ponta de lança do anzol lhe rasgava a carne. Mordeu então a linha. No desespero, cortou-a. Mas o anzol continuou lá. Ele nunca esqueceu este momento. Viajou milhares de quilômetros para tentar ficar em sossego. Descobriu que não existe isso. Todos aqueles peixes o olham como se fosse um sobrevivente de eras antigas. É que a ponta do anzol aflorou entre os olhos. Já ganhou o apelido de capricórnio das águas revoltas. Ele não liga. Fica feliz apenas por ter sobrevivido.

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Uma ideia sobre “HORÓSCOPO

  1. peidandonabolacha

    metáforas são o ‘ápice’ da literatura. é como colocar (literalmente) um camelo dentro do fundo da agulha. é como entrar, bater e sair sem dar explicações. dai pra frente, ‘dói em cada um’ de maneira diferente, justamente nos locais das cicatrizes próprias.

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