15:41Para Izabela Maria Furtado Kestler

izabela

Izabela Maria Furtado Kestler

Adiei o quanto pude essa conversa porque tinha de ser assim. Mas uma imagem de hoje na tela de tv, com os filhos de Dorival Caymmi e lá no fundo a imagem do mar do Rio de Janeiro ladeando Danilo, deflagrou o que ainda não sei. Uma imagem, talvez, no fantástico Teatro Rival no centro velho da cidade. Você estava lá, porque fã do artista, mesmo sabendo que Nana e Dori estavam acima no gosto da sua companhia. E o mar… O mar que agora te protege para sempre, o mesmo mar, o mesmo oceano que embalou seu nascimento, primeira filha de um alagoano e de uma paraibana, ambos nobres, ambos decentes, ambos brasileiros destes que dão valor ao que interessa. Ganharam o sul maravilha com a inteligência e pouco estudo. De repente viram a primeira filha, você, aproveitando a brecha e, sabe-se lá por quê, indo atrás do que estava nos livros, dessa imensidão de livros do mundo. Minha prima, filha do meu padrinho de batismo, católico daqueles, irmão da dona Zefa, Silva de sobrenome, mas que virou nome, apesar de ser Manoel e também Santana e também Dé. Pois foi você, pouco mais nova que o paulistano pobre lá da Zona Leste, que primeiro me encafifou com essa história de livro. Mesmo porque, depois de uma certa idade, talvez 10, 11, 12, você não desgrudou mais deles – e eu não entendia o motivo, mas sabia que devia ser algo importante. Izabela que usava os óculos que um dia joguei fora mais pela gozação do que abominação. Óculos fundo de garrafa, mas você não estava nem aí, porque, agora, na adolescência, tinha descoberto o inglês e lia tudo no original. Sua mãe, Iza, e suas irmãs Izana e Izaline, sabiam, como todos, que em alguma coisa aquela compulsão ia dar. Deu, mas em outra língua, porque até hoje não sei porque você desembarcou na língua de Goethe, e voou para a tradicional Universidade de Freiburg, e ficou dez anos por lá, período em que casou com um alemão, você morena brazuca, e voltou solteira, mas com um doutorado em literatura alemã. No vôo do tempo, tomei o seu gosto pelas letrinhas em tudo quanto é canto, mas não tanto quanto você, me descobri sobrevivendo delas, em revistas, jornais, e nos falávamos como parentes distantes, mas chegados porque as palavras nos unram mais. Ah, um dia fiquei todo orgulhoso porque, de Nova York,  Paulo Francis citou uma missiva sua. E no dia em que conheci o seu cantinho no Rio de Janeiro, disse pra mim mesmo que você sabia tudo, porque não atravessou a ponte para a Barra dos seus parentes. Escolheu o prédio antigo no Flamengo, decorou-o sobriamente e, ali, ao entrar e visitar estantes, descobri mais uma paixão mútua, Raymond Chandler, e babei ao ver todas as edições em inglês e alemão e os filmes decorrentes dos livros do mestre do policial, assim como aqueles onde foi roteirista. Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a última vez que nos vimos foi aqui, em Curitiba, na frente da reitoria, para onde você veio a convite. Levei-a ao aeroporto, constatei que continuava sendo a menina do mundo dos livros, a criança com quem brincava de tentar desvendar os segredos do cofre enorme que havia na garagem da primeira casa da família, em Higienópolis, ainda no subúrbio carioca. Ou então, no banco de trás do inesquecível Vauxhall importado do seu pai, subindo e descendo a serra de Teresópolis, contando ônibus, inebriando-se nas paisagens, imaginando-se no picos dos morros. Sempre disse que você era a única intelectual da família – e sentia um orgulho danado disso porque era como se quisesse dizer a qualquer um que tudo é possível com determinação. Você se enterrou no mundo mágico dos livros. Eu peguei um passaporte neles e fui quebrando a cara aqui e ali, mas me segurando nas letras, nas letras. Um dia essas letras fizeram surgir seu nome numa lista. Uma lista triste de passageiros de um avião desaparecido. Foi a primeira vez que isso aconteceu comigo. E aí aconteceu uma coisa estranha de não se saber o que fazer. Telefonei com medo, porque seu pai, meu tio, padrinho, estava doente. Confirmou-se tudo e as notícias martelaram por uma eternidade. Você, que ia para Leipzig a convite do Instituto Goethe, passou por cima de Fernando de Noronha onde esteve há pouco com sua mãe – e ela, engraçada como sempre, me contara pouco tempo atrás histórias de rachar de rir daquela viagem. Pois você foi e depois eu vi minha tia Iza na tela de uma televisão dizendo a coisa mais bonita em meio à dor mais profunda que pode existir no ser humano: “Eu quero que ela fique onde está”. E você ficou no mar, minha prima Izabela Maria Furtado Kestler. E eu vi os Caymmi hoje, vi o mar, ouvi aquela música que começa dizendo que é doce, e lembrei, e fui buscar as palavras que estão no meu livro de vida, para te oferecer como prova de amor e de agradecimento por você ter me despertado para elas quando éramos as crianças de sempre.

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5 ideias sobre “Para Izabela Maria Furtado Kestler

  1. Gonzaga

    Olá! Conheci sua prima durante minha passagem de dois meses por Freiburg, fazendo curso de alemão no Goethe Institut. Vez ou outra nos encontrávamos no restaurante universitário e ela contou-me sobre o primo que morava em Curitiba, que também era jornalista. Isto foi há mais de 20 anos. Agora, para minha surpresa, fico sabendo que um do momentos mais marcantes desse acidente (a frase dita pela sua tia), dizia respeito àquela jovem que conheci em Freiburg, prima de Zé Beto. Abração!

  2. Daniel Andreatta

    Zé,
    Não o conheço pessoalmente, mas sou assíduo visitantes de seu blog…
    quero lhe dizer que o texto que acabei de ler foi marcante…
    meus sinceros parabéns pelo texto e meus sinceros sentimentos pela perda.

  3. Izana Mª Furtado Sant'Anna Sampaio

    Beto,
    Só hoje tomei conhecimento de seu blog, através da tia Antonia. E mais agora foi uma alegria muito grande falar contigo.
    Meu deparei com o texto que vc fez para minha irmã e não pude deixar de chorar emocionada com suas palavras de sentimento puro de carinho e amor.
    Para ti envio também o texto lido na missa pelo 5º dia do desaparecimento da minha irmã, preparado pela professora Magali da UERJ, grande amiga e companheira nos assuntos de literatura germânica.

    “Como podemos iniciar um texto sobre uma pessoa que há menos de uma semana saia do Brasil, pronta para consolidar uma fase mais madura de sua vida? Talvez falando um pouco dos motivos que a levaram a alçar voo e ir para terras mais distantes.

    Izabela era uma leitora ávida, daquelas que lia qualquer coisa que pudesse lhe oferecer uma visão mais ampla do mundo: jornais, anuários, revistas de banca de jornal, revistas especializadas e livros, muitos e muitos livros. Eram dois jornais diários, reportagens televisivas e mais linhas impressas. Mas não era uma apreensão apenas passiva, pois ininterruptamente da mesma forma intensa transformava o espaço branco da tela em e-mails dirigidos a vários lugares do mundo, em ensaios e em livros.

    Mas os textos não lhe passavam apenas diante dos olhos, possuía uma memória ímpar, capaz de saber o enredo das centenas de livros que trazia a partir da leitura dentro de si e que teimava em nos contar. Mas não só de literatura vivia essa moça cuja jovialidade madura iria completar 50 anos no próximo dia 20: os cenários político, sociológico, filosófico também eram olhados e retidos com a mesma sofreguidão. Às vezes nos perguntávamos o que Izabela ainda não havia lido. Provavelmente tratados de física e matemática. Mas o que transitava na área das ditas humanidades era objeto de desejo daqueles grandes olhos curiosos e sedentos de reter o mundo.

    Agora podemos interpretar seu jeitão acelerado e determinado, sua pressa em dizer ao mundo o que dele havia retido em si, como uma vontade de deixar marcas nesta sua passagem tão curta. Como se soubesse de forma inexplicável que sua passagem seria menor do que o grande mundo que vislumbrava em suas leituras.

    Mas isso não a impedia de querer curtir uma praia, de estirar-se “lagartixamente” ao sol, deixando-se inundar pelas forças dos raios solares que inundavam de melanina a pele que exibia posteriormente com grande orgulho, expresso por seu sorriso largo.

    Esse jeito de ser tão carioca fazia par com um modo de vida espartano que lhe retirava o gozo de luxos, sem contudo poupar-se de manicura semanal, quando pintava suas unhas sempre de vermelho, sua cor favorita. Vivia por amor a seu trabalho, por vontade de fazer. Em seu caminho ajudou muitos. As portas de sua casa estavam sempre abertas para aqueles que precisassem de uma orientação acadêmica. Não foram poucos os que lhe pediram orientação e conselho. Com presteza ímpar lá estava Izabela sempre disposta a contribuir. Muitas foram as realizações de nossa amiga. Somente nesses últimos anos podemos nomear vários encontros, simpósios, congressos e publicações que ela ajudou a dar à luz. Mas é desnecessário, pois os que aqui estão a conheceram e certamente dentre tudo o que foi listado, cada um deve ter o seu quinhão.

    Mas gostaria ainda de falar de sua última vitória: a de ter passado na prova do Detran! É, ela se orgulhava até das pequeninas vitórias. Ao telefone, em uma de nossas conversas que não duravam menos de uma hora em vários momentos da semana, descreveu-me sucintamente a prova e a desculpa por não ter tido 100% de acerto: “uma sacanagem, umas perguntas que não tinha em apostila nenhuma”. Certamente são palavras condizentes a uma adolescente, não a uma professora doutora em plena maturidade. Mas, como disse, assim era Izabela. Uma determinada a ter sucesso em tudo que fazia.

    Para finalizar gostaria de ler uma poesia de Goethe, autor por quem nutria uma grande admiração, tanto que se dirigia para a Alemanha, ao encontro de outros que também o admiravam.

    Vermächtnis

    Kein Wesen kann zu Nichts zerfallen!
    Das Ew’ge regt sich fort in allen,
    Am Sein erhalte dich beglückt!
    Das Sein ist ewig: denn Gesetze
    Bewahren die lebend’gen Schätze,
    Aus welchen sich das All geschmückt

    Testamento

    Ser algum pode em nada desfazer-se!
    Em todos eles se agita sempre o Eterno.
    Confia, alegre e feliz, sempre no Ser!
    Que o ser é eterno: pois leis
    Conservam os tesouros viventes
    Dos quais o Universo se adornou.

    Obrigada, Izabela!

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