por Sebastião Nery (www.sebastiaonery.com.br)
Chegamos cedo, dez da manhã. José Aparecido de Oliveira, o poeta Gerardo Mello Mourão, eu. Era um belo domingo de sol em São Paulo, na rua Santo Amaro, 5. Jânio Quadros veio abrir o portão, feliz, sorridente. Cortava a grama com um carrinho anavalhado.
Era 1970, a ditadura militar corria feroz. Todo mês, quando em São Paulo, Aparecido arrebanhava alguns amigos para almoçarmos com Jânio. Fomos para a varanda. Foram chegando o padre Godinho, Roberto Cardoso Alves, Luís Carlos Santos. Esperávamos Oscar Pedroso Horta. Tomávamos uísque ou vinho. Jânio contava coisas, escandia as sílabas:
– O Nery, que foi quase bispo, sabe que vinho é tinto. Não há vinho branco. É uma bebida dos homens. A bebida de Deus é o vinho tinto. Já viram missa com vinho branco? Os porres da Bíblia, de Noé, de Davi, foram todos com vinho tinto, sim. E o que Cristo bebeu na Ultima Ceia.
JANIO
Fomos para o almoço. A mesa, farta e colorida. Já estávamos no conhaque e no charuto, quando dona Eloá chega perto de Jânio e diz-lhe alguma coisa ao ouvido. Jânio crespa as mãos, revolve os olhos, passa os dedos retorcidos pelo cabelo e geme fundo:
– Não pode ser! Meu Deus, não pode ser!
As lágrimas desabam pelo rosto, ele se levanta e grita:
-Muriçoca! Muriçoca morreu!
Eu tinha pensado que era a filha Tutu. Perplexos, levantamo-nos todos. Ele andando na frente, nós atrás. No fim do jardim, deitada na grama, morta, uma cachorrinha branca, meio amarelada. Jânio senta-se no chão, pega-a nos braços, aperta contra o peito, beija-a em soluços, chorando convulsivamente.
A RAINHA
Dona Eloá tenta levantá-lo, a voz trêmula:
– Jânio, temos outros cães no jardim. Ela foi, os outros ficaram.
– Cães, Eloá! Cães! Cães há muitos, eu o sei. Mas a Muriçoca era única. E não porque a rainha Elizabeth m`a deu. Quando me cassaram, quando o algoz fardado caiu sobre mim, todos me abandonaram, todos Eloá, até tu. E tu também, Aparecido. Até tu. E só a Muriçoca me acompanhou, na solidão e na dor.
Dona Eloá olhou para nós, desolada:
– Não diga isso, Jânio. Voce sabe que não é verdade. Aqui estão seus amigos. Aqui está o Aperecido.
– Amigos, Eloá, amigos. A Muriçoca era um pedaço da minha alma.
APARECIDO
Ele ali no chão, soluçando, a cachorrinha no colo, e nós abestalhados sem saber o que fazer. Ele revirava os olhos e arquejava:
– Deixem-me só. Deixem-me com minha dor.
Aparecido resolveu acabar com aquilo:
– Presidente, vamos para o gabinete conversar. Os empregados enterrarão a Muriçoca, aqui mesmo, debaixo das árvores.
Ele deu um salto, ficou de pé, a cachorrinha nos braços, com o pescoço caído, como uma boneca de Chaplin:
– Eles não, Zé. Eu. Sepultá-la-ei eu mesmo, com minhas mãos e minhas lágrimas. No vértice do jardim. Ficará eterna na minha saudade, sob uma lápide de bronze. Prometi-lhe, cumprirei.
A COVA
E saiu andando a passos largos, os olhos tortos, os cabelos desgrenhados, para o centro do jardim, beijando e apertando a cachorrinha contra o peito. E nós atrás. Uma tensa e ridícula procissão medieval, como em um filme de Buñuel na Catalunha. No meio do gramado, Jânio parou, olhou para os quatro cantos, deu um passo, bateu o pé no chão:
– Será aqui, no vértice. Ela sempre comigo, até meu último dia.
Um rapaz trouxe uma picareta, Jânio entregou a Muriçoca a dona Eloá e começou a cavar, aflito. Vermelho, em lágrimas, cavava e suava. Aparecido reclamou:
– Presidente, não faça isso. Acabou de almoçar. Dê-me, eu cavo.
Pegou a picareta e passou a cavar. Tinha posto safenas um mês antes. Sobrou para mim. Tomei a picareta da mão dele e fui cavando. Jânio, de pé, a cachorrinha de novo nos braços, dava ordens:
– Por favor, Nery, fundo, mais fundo, bem fundo!
GODINHO
Robertão e Luís Carlos Santos tinham saído para buscar cal, chegaram. A cova estava pronta. Dona Eloá tinha pedido flores ao empregado. Jânio, depois de aflitos beijos lacrimejados, pôs Muriçoca na cova, disse uma série de coisas incompreensíveis, chamou padre Godinho:
– Padre, uma prece última, por favor. Ela era um ser humano. E dos poucos que conheci em minha vida. Faça-lhe a derradeira prece.
Padre Godinho, entre a liturgia e o amigo enlouquecido, olhou para mim e começou a recitar em seu latim perfeito um poema de Horácio. Jânio olhava para o céu, procurando a alma de Muriçoca na tarde fria que caía.
Voltei lá outro dia.No vértice do jardim, uma lápide de bronze cobria Muriçoca. Jânio enganou São Paulo e o Brasil. Não enganou a Muriçoca.
A CPI
O governo quer fazer com a CPI da Petrobrás o que Janio fez com a Muriçoca : enterra-la no vértice do Congresso. Sob uma placa de pânico.
Primor de texto Zé Beto.
Uma verdadeira aula de portugues , Nery captou como ninguém o estilo do genial e tresloucado Jânio Quadros .Quem é da antiga como eu sabe que o homem da vassoura foi único no trato do vernáculo , fantástico na forma e mais ainda no conteúdo.