16:41As chagas de Marinho

do blog do Juca Kfouri:

Por ROBERTO VIEIRA

No hospital a noite é longa. Sobra tempo pra voltar no tempo, vasculhar na memória os fatos mais distantes. Silêncio no corredor. Esqueceram o remédio da meia-noite. Quem sabe dá pra dormir um pouco sem o sedativo?

O velho campo dos Aflitos. Tudo era novidade pra quem vinha de Natal. Chegou no Náutico desconhecido. Cabelos louros. Cara de menino. Futebol de craque. Um repórter tascou precipitado:

“Chegou o amigo de Petinha! Será que joga alguma coisa esse rapaz?”

Primeiro treino. Bola presa entre os pés pela lateral. Cruzando o campo inesperadamente. Os companheiros observam o doido. A bomba sai violenta, letal, no ângulo: Reservas 1 x 0.

O Recife ficou pequeno em poucos meses. Fenômeno. Agnaldo Timóteo viu o menino jogando em Recife. Ligou pro Botafogo:

“Comprem! Urgente!”

Chegou no Rio com a mesma cara de menino.

“Domingo tu entra contra o Rei!”

Antes de o jogo começar, Pelé falou pra os companheiros:

“A mina é o Galego!”

Na primeira bola, Marinho se antecipa ao Rei e mete-lhe um chapéu. Como Garrincha nas canetas de Nilton Santos. Só que agora, Nilton Santos é Marinho. E Marinho é a alma do velho Garrincha. Infernizando os santistas. Impressionando o mundo. Desempregando os zagueiros que lhe fazem cobertura.

É convocado para a Seleção. Um holandês entre os brasileiros no Mundial de 74. Leão lhe desfere um soco depois do gol polonês.

“Irresponsável!”

Leão que falhara no primeiro gol holandês de Neeskens. Sem socos.

Amigos. Violão. Birita. Acorda no meio da madrugada. Sem saber onde está. Aos poucos recorda dos amigos de aluguel, das meninas, das noitadas. Os alemães sonham em levá-lo. Paul Breitner diz não!

“Gênio na esquerda aqui basta eu”

Marinho passeia entre os astros. No Cosmos. Aos poucos vai caindo na terra.

“Hepatite C, Marinho. Alcoolismo. Ou você deixa a bebida ou nada podemos fazer por você.”

Mas como se a bebida é o último refúgio para as pernas que desobedecem ao drible? Como se apenas a bebida traz o Maracanã lotado? A defesa da Colômbia fechada. O chute que sai em curva, por sobre o arqueiro?

O copo sobre a mesa observa o antigo craque imaginando outro tempo.

Riachuelo.

Petinha morreu, Marinho.

Cadê o Arthur, o Dirceuzinho, o Jair, o Krol?

Quarenta e cinco minutos do segundo tempo.

0 x 0.

A vida encara o lateral esquerdo. Bola nos pés. Rente a lateral.

A vida faz que vai e vem. O lateral estático observa. Sua filha reza.

Marinho agora é o último homem.

Um drible pode ser fatal…

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Uma ideia sobre “As chagas de Marinho

  1. jeremias bueno

    Marinho Chagas (Francisco das Chagas Marinho) foi um dos mais espetaculares laterais esquerdos da história do futebol brasileiro, talvez o único a se ombrear a Nilton Santos.

    Na seleção-ferrolho de 74, Marinho era o nosso principal e talvez único atacante. Sim, ele era um lateral-esquerdo atacande, dono de um chute certeiro com o canhão que possuia no pé direito.

    Não vencemos a Copa de 74, muito pelo contrário, mas no ano do carrossel holandês e do timaço alemão, nós tínhamos o Marinho Chagas feito um Dom Quixote de chuteiras sem escudeiro nem cavalo a não nos permitir morrer de vergonha.

    Obrigado por tudo, Marinho!

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