8:36Eu conheço este Maguila!

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Fotos de LINEU FILHO

Eu conheço o Maguila, que agora está numa gaveta da geladeira do Instituto Médico Legal de Curitiba esperando uma identificação que, provavelmente, nunca virá. Ele será enterrado como indigente daqui a alguns dias, mas quantos Maguilas há pelos cantos obscuros desta cidade? Este Maguila foi encontrado sob o viaduto colorido da Vila Capanema num dia de muito frio. Estava caído de bruços, cara pousada sobre o próprio vômito, vestido com três blusas, quatro calças e pés descalços. Havia dois buracos de balas no peito, um cachimbo de crack no bolso e uma tatuagem aracnídea na mão direita preta de sujeira. Eu conheço o Maguila porque ele está aqui dentro, coabitando minha vida limpinha. E sei que este Maguila está aí, em você que está lendo e vendo estas imagens fortes. O Maguila pode aflorar a qualquer momento. Nunca sabemos. Comigo ele veio junto com o álcool, que bebia para curar uma dor que nasceu quando fui gerado. Ou antes, sabe-se lá. E um dia ele bateu à porta da minha cabeça e me convidou para abandonar tudo, porque nada tinha mais graça. Para que a casinha bonitinha de madeira pintada de marrom e com janelas brancas no Jardim Social? Para que o casamento aparentemente tranqüilo cujo resultado eram os dois filhos saudáveis? Para que o emprego bem remunerado, os textos lidos no Brasil inteiro, se eu sofria para escrever uma letra, se penava em ter de ir conversar com os boleiros da vida ? O meu Maguila me arrastava para a rua, para o nada, para junto dos Maguilas destes outros desesperançados, abandonados, inchados, que esperam a morte encurtando o tempo em goles de qualquer coisa que tenha álcool, até o de perfumes, desodorantes e do combustível para carro. O meu Maguila, porém, não foi forte o suficiente, mas ficou aqui, cutucando, inventando nova fórmula de dopagem, em carreiras bem batidas do pó branco, depois em líquido na seringa para ir direto à corrente sanguínea, para, quem sabe, abreviar tudo numa overdose que não veio. Este Maguila que está na gaveta do IML é da era do crack, este demônio que domina tudo na primeira baforada e vai ceifando vidas. Alguém falou que este homem,cuja face não conhecemos, era violento. Talvez daí o apelido do boxeador. Mas… era mesmo? Tive vários amigos que se tornavam briguentos ao primeiro gole. Conheço muitos e muitos dependentes que, sem nada que interfira no sistema nervoso central, são anjos. Maguila se escondeu debaixo do viaduto – e quase ninguém sabia disso. Queria se proteger do mundo que ele nunca entendeu. Nós também não entendemos, mas procuramos disfarçar. Provavelmente ele tinha medo. E um gole, uma baforada no cachimbo, na lata de refri, o tornava valente para tirar o que era do outro, para conseguir o dinheiro suficiente de mais uma pedra. Um dia encontraria alguém para acabar com sua fama de valente – e esse é um script conhecido. Se não fosse assim, seria de outra forma, porque ele, infelizmente, não teve como descobrir que é possível controlar esse bicho que há dentro da gente. Esse bicho descrente de tudo, raivoso, destruidor. Maguila não teve escolha. Talvez, em algum momento, quando ajoelhou diante das imagens de Nossa Senhora Aparecida e Nossa Senhora de Fátima, colocadas no pequeno altar de seu esconderijo, talvez num breve momento essa possibilidade da escolha tenha lhe passado pela cabeça carregada de nuvens cinzas. A escolha entre aquilo que vivia e aquilo que um dia conheceu, porque ninguém nasce assim. Mas isso deve ter sido tão rápido… E este Maguila também não pode receber a carga das palavras iluminadas da Bíblia. Uma só poderia mudar sua vida. Só por hoje mudou a minha e a de muita gente que também já esteve na rua, dominado. Está lá o corpo estendido no chão. É o de Maguila. Que conheço, pois está aqui dentro, sempre querendo sair.

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11 ideias sobre “Eu conheço este Maguila!

  1. Dá-lhe

    Falou Zé, perfeita, a mensagem faz-nos refletir sobre a condição humana. Dificil, né? Compreendo você. Sucesso e juízo.

  2. Pé Vermelho

    Pois é, Zé…No altarzinho do Maguila – tem um dentro de mim idem, tem duas santas mães de Jesus. Uma escura, pois tarrfeada por pescadores nas lamas escuras do Parnaíba, no seu trajeto por Aparecida. Outra alva, eis que vista por três jovenzinhos, iluminada pelo sol sobre uma arvorezinha em Fátima. Nossa Senhora que assistia a via crucis do Maguila do Capanema, tá intercedendo pela seu descanço junto ao Criador que precisa sim, castigar os que judiaram tanto do seu filho estuporado pelas drogas. As balas, ora, as balas, aliviaram suas dores, apressaram mais um suicidio.

  3. beth

    Texto fortte de quem sofreu na pele os horrores da vida.
    Ate na dor sua poesia e linda!
    Impossivel ler esse texto sem se emocior.

  4. César

    Saúde Zé!

    Tá lá o corpo estendido no chão

    Em vez de um rosto uma foto de um gol

    Em vez de reza uma praga de alguém

    E um silêncio servindo de amém

  5. jura

    Parabena pelo texto, so quem ja viveu tudo isso tem condiçoes de escrever um texto assim, pena que muitos nao consegue manter seu maguila adormecido…

  6. Simon taylor

    Putzglila, Zé…

    Esse texto e essas fotos acabaram comigo.

    Queria poder dizer algo bom, algo grandioso, ou até mesmo um elogio (totalmente redundante, tratando-se dos autores de texto e foto), mas não consigo.

    De qualquer maneira, são cutucadas na ferida como essa que fazem a gente pensar na vida e fazer algo.

    Simon

  7. miriam

    zé, este é você.
    com todas as letras.
    é como o Simon disse aí: não dá pra dizer nada. Você já disse tudo que valesse a pena. Mas é preciso registrar que a gente leu e se emocionou demais.
    como você existem poucos.

  8. Burguês Mal Pago

    nessas horas que eu revejo as coisas que ainda não vi, pelas suas “lentes” interiores, carregadas das referências de alguém que já viu isso tantas vezes e consegue por pra fora assim, simples e diretamente em um discurso breve que diz tanto. abrex.

  9. zezo

    é isso ai seu ZÉ !!! continuemos acordados, “lutando” para manter nossos maguilas adormecidos! Abraço.

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