18:25Testamento do Brasil

por Paulo Mendes Campos

Que já se faça a partilha. 
Só de quem nada possui 
nada de nada terei. 
Que seja aberto na praia, 
não na sala do notário, 
o testamento de todos. 
Quero de Belo Horizonte 
esse píncaro mais áspero, 
onde fiquei sem consolo, 
mas onde floriu por milagre 
no recôncavo da brenha 
a campânula azulada. 
De São João del-Rei só quero 
as palmeiras esculpidas 
na matriz de São Francisco. 
Da Zona da Mata quero 
o Ford envolto em poeira 
por esse Brasil precário 
dos anos vinte (ou twenties), 
quando o trompete de jazz
ruborizava a aurora 
cor de cinza de Chicago. 
Do Alto do Rio Negro 
quero só a solidão 
compacta como o cristal, 
quero o índio rodeando 
o motor do Catalina, 
quero a pedra onde não pude 
dormir à beira do rio, 
pensando em nós-brasileiros 
– entrelaçados destinos – 
como contas carcomidas 
de um rosário de martírios.

 
De Lagoa Santa quero  
o roxo da Sexta-feira,  
quero a treva da ladeira,  
os brandões da noite acesa,  
quero o grotão dos cajus,  
onde surgiu uma vez  
no breu da noite mineira  
uma alma doutro mundo.  
Da porta pobre da venda  
de todos os povoados  
quero o silêncio pesado  
do lavrador sem trabalho,  
quero a quietude das mãos  
como se fossem de argila  
no balcão engordurado-.  
Ainda quero da vila  
ira que se condensa,  
dor imóvel e dura  
como um coágulo no sangue.  
Da Fazenda do Rosário  
quero o mais árido olhar  
das crianças retardadas,  
quero o grito compulsivo  
dos loucos, fogo-pagô  
de entardecer calcinado,  
a névoa seca e o não,  
a névoa seca e o não,  
o não da névoa e o nada. 
Da cidade da Bahia
quero os brancos pobres todos,  
quero os pasmos tardos todos.  
Do meu Rio São Francisco  
quero a dor do barranqueiro,  
quero as feridas do corpo,  
quero a verdade do rio,  
quero o remorso do vale,  
quero os leprosos famosos,
escrofulosos famintos,  
quero roer como o rio  
o barro do desespero.
Dos mocambos do Recife  
quero as figuras mais tristes,  
curvadas mal nasce o dia  
em um inferno de lama.  
Quero de Olinda as brisas,  
brisas leves, brisas livres,  
ou como se quer um sol  
ou a moeda de ouro  
quero a fome do Nordeste,  
toda a fome do Nordeste.  
Das tardes do Brasil quero,  
quero o terror da quietude,  
quero a vaca, o boi, o burro  
no presépio do menino  
que não chegou a nascer.  
Dos domingos cor de cal  
quero aquele som de flauta  
tão brasileiro, tão triste.  
De Ouro Preto o que eu quero  
são as velhinhas beatas  
e a água do chafariz  
onde um homem se dobrou  
para beber e sentiu  
a pobreza do Brasil.  
Do Sul, o homem do campo,
matéria-prima da terra,  
o homem que se transforma   
em cereal, vinho e carne.  
Do Rio quero as favelas,  
a morte que mora nelas.  
De São Paulo quero apenas  
a banda podre da fruta,  
as chagas do Tietê,  
o livro de Carolina.  
Do noturno nacional  
quero a valsa merencórea  
com o céu estrelejado,  
quero a lua cor de prata  
com saudades da mulata  
das grandes fomes de amor.  
Do litoral feito luz  
quero a rude paciência  
do pescador alugado.  

Da aurora do Brasil  
– bezerra parida em dor –  
apesar de tudo, quero  
a violência do parto  
(meu vagido de esperança).

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